Seguidores

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Senhor Diretor

Lygia Fagundes Telles
(Brasil, 1923)

Senhor Diretor


Seca no Nordeste. Na Amazônia, cheia - leu Maria Emília na manchete do jornal preso aos varais da banca com prendedores de roupa. Desviou o olhar severo para a capa da revista com o jovem casal de biquíni amarelo, ela na frente, ele atrás, enlaçando-a na altura dos seios nus, amassados sob os braços peludos. Estavam molhados com se tivessem saído juntos de uma ducha. Sérios. Por que todas essas fotos obscenas tinham esse ar agressivo? Emendados feito animais. E brilhosos, escorrendo uma água oleosa, desde Sodoma e Gomorra os óleos e ungüentos perfumados fazendo parte das orgias. Até a manteiga, imagine, a inocente manteiga. Audácia da Mariana em contar o episódio da manteiga, aquela indecência que viu num cinema em Paris. E se sacudindo de rir, foi tão engraçado, Mimi, ele dançando o tango de calças abaixadas, tão cômico! E confessou que viu o filme duas vezes para entender melhor aquele pedaço, a debilóide. É o cúmulo. Disse que apareceu uma marca de manteiga que aproveitou para fazer sua propaganda, funcional com ou sem sal! Três anos mais velha do que eu, sessenta e quatro e meio. E se deliciando com a cena de um anormal pedindo manteiga. Como é que as autoridades permitem tamanho deboche? Falta de respeito. De pudor. Se uma mulher de sessenta e quatro anos e meio se deixa levar como uma folha na correnteza, o que dizer então dos jovens Meus Céus meus Céus os frágeis jovens sem estrutura, sem defesa, vendo esses filmes. Essas publicações.
Televisão é outro foco de imoralidade. Anúncios mais sujos, uma afronta. Hoje mesmo escreveria uma carta ao Jornal da Tarde, carta vazada em termos educados. Suspirou. Ainda há pessoas educadas mas que também (a fisionomia endureceu) podem ficar coléricas. Senhor Diretor: antes e acima de tudo quero me apresentar, professora aposentada que sou, paulista, solteira. Um momento, solteira, não, imagine, por que declinar meu estado civil? Basta isto, uma professora paulista que tomou a liberdade de lhe escrever porque a ninguém mais lhe ocorre expor sua revolta, mais do que revolta, seu horror diante desse espetáculo que a nossa pobre cidade nos obriga a presenciar desde o instante em que se põe o pé na rua. O pé na rua? A coisa já invadiu a intimidade dos nossos lares, não tenho filhos, é lógico, mas se tivesse estaria agora desesperada, essa mania de iniciar as crianças em assuntos de sexo, esses livros, esses programas infantis, Senhor Diretor, e esses programas que conspurcam nossas inocentes crianças, e o filme que fizeram com a manteiga! Um momento, espera, esse pedaço não: digo que a tevê está exorbitando de um modo geral em nos impor a imagem da boçalidade e digo que resisti em comprar uma, bem que resisti, Senhor Diretor. Mas sou sozinha e, às vezes, a solidão. A perigosa solidão. Mas tico vigilante (aprumou-se, levantou a cabeça) para não acontecer comigo o que aconteceu com a Mariana, tão fina, tão prendada. Família tradicional, de um dos melhores troncos paulistas, olha aí a Mariana. viagem jóia. Fiz compras lindas mas está na hora de voltar porque minha calça já perdeu o vinco, escreveu no cartão que me mandou de Manaus. A calça perdeu o vinco e ela, a vergonha. Sessenta e quatro anos e meio. Quem visse podia pensar, é uma jovem que foi fazer contrabando. Espera, jovem não, que jovem não se importa com vinco de calça, postal de uma velha mesmo e com medo de parecer desatualizada. Então conta bandalheiras, me diz ôi! no telefone e usa calça grudada no derrière. Só falta usar aquelas camisetas com coisas escritas nas costas. Tanto medo, Senhor Diretor. Tanto medo. Eu também tenho medo. É duro envelhecer, reconheço. Mas e o orgulho? Apertou a bolsa contra o peito e lançou um olhar em redor. Meus cabelos branquearam, meus dentes escureceram e minhas mãos, Senhor Diretor, estas mãos que - era voz corrente - foram sempre o que tive de mais bonito. Olhou as próprias mãos enluvadas. Ainda bem que estão enluvadas.
- A senhora me dá licença? - disse o vendedor de jornais despregando do varal a revista com os jovens escorrendo água.
Ela afastou-se com um olhar desaprovador para a mocinha de olhos bistrados, mascando chiclete de bola: queria a revista e queria também uma novela em quadrinhos, “Aquela ali”, pediu e entre os lábios o chiclete estufou rosado até estourar num puf! Maria Emília voltou depressa para o outro lado o rosto desgostoso, eis aí. Já estava escrevendo uma outra carta, meus Céus, não misturar os assuntos que velhice era outro tópico, agora tinha que se concentrar nessa sufocante vaga de vulgaridade que contaminava até as pedras. A poluição também ficaria para uma outra vez, o que interessava denunciar era essa poluição da alma. A Mariana, por exemplo. Está resistindo bem ao ar, até que está saudável apesar da asma, mas e por dentro? Resistir, quem há de? Uma ilusão gemia em cada canto - gemia ou chorava? Tempo de sentimento. De poesia. Agora o tempo ficou só de detergentes para as pias, desodorantes para as partes, a quantidade de anúncios de desodorantes. Como se o simples sabão não resolvesse mais. Mariana ouvia a publicidade na tevê, no rádio, entrava nos mercados e comprava tudo, até pílulas homeopáticas para excesso e escassez, mas Mariana, minha querida, já faz tanto tempo que você está na menopausa! Ela riu, meu Deus, é claro, ando atordoada com tanta ordem que eles dão, não é que acabei me distraindo? Um dia ainda vai me dizer que foi lançado o ser biônico para damas e cavalheiros solitários, a tevê deu, Mimi, fazem tudo com a gente! Portátil. Eletrodomésticos. Eletrochoques. Desconfio às vezes que ela está ficando louca, que todos estamos ficando loucos. Que estamos nos afastando cada vez mais de um planeta de paz e nos aproximando rapidamente de outro planeta só de aflição, só de violência (essa idéia é boa) e daí, Senhor Diretor, é preciso alertar a população, alertar as autoridades, temos que neutralizar essa influência perversa. O senhor, eu - a elite pode estar a salvo. Mas e os outros? Quando fui de ônibus para Brasília, eu mesma não me envolvi como uma criança débil? Por toda parte só um anúncio, Beba Coca-Cola! Beba Coca-Cola! Nas estradas, nas cidades, nas árvores e nas fachadas, nos muros e nos postes, até na toalete de lanchonetes perdidas lá no inferno velho, a ordem, Beba Coca-Cola! E eu então - ai de mim! - com toda a ojeriza que tenho por esse refrigerante, pensando em pedir uma tônica com limão ou um guaraná, naquele calor e naquele cansaço, cheguei no balcão e pedi uma Coca-Cola gelada. Acordei do obumbramento engolindo aquela coisa marrom com gosto de sabonete de trem, tinha um trem (faz tanto tempo, Senhor Diretor) com esse sabonete redondo e preto, dependurado na correntinha do toalete. Meu pai me ajudava a esfregar as mãos, eu era uma menininha de cachos mas até hoje sinto o cheiro daquela espuma. Imagine se papai estivesse vivo e soubesse do que aconteceu no Municipal, um moço subindo no palco e fazendo a necessidade, ali em cima dos dourados, sob as vistas de Carlos Gomes, de Verdi! Espera, melhor cortar esse pedaço, mais objetividade: insistir apenas nisso, no perigo dessa propaganda que, bem dirigida, pode até torcer um destino como aquele mágico torcia talheres. A ordem de beber Coca-Cola não corresponde de um certo modo a essa ordem de fazer amor, faça amor, faça amor! Cheguei um dia a ter uma miragem quando em lugar da garrafinha escorrendo água no anúncio, vi um fálus no fundo vermelho. Em ereção, espumejando no céu de fogo - horror, horror, nunca vi nenhum fálus, mas a gente não acaba mesmo fazendo associações desse tipo? E os santos, meus Céus, como é que estão se defendendo os que têm vocação para a santidade? É preciso ter couro de jacaré para agüentar tamanho impacto. E esta pobre pele tão fina apesar do tempo, ainda preservada nas partes cobertas. Não foi no jornal que a Mariana leu (o fascínio que tem por jornais populares) o caso daquele moço? Monstruosidade, o moço que pegou uma garrafinha de Coca-Cola e enfiou quase inteira lá dentro da menina, horrível, quando chegaram ao hospital ela já estava agonizando, Mas por que fez isso, monstro?!, o delegado perguntou e ele respondeu chorando aos gritos que também não sabia, não sabia, só se lembrava que uma vez leu numa revista que em Hollywood, numa festa que durou três dias, um artista enfiou uma garrafa de champanhe na namorada quando também não conseguiu fazer naturalmente. Mas me lembrei disso por lembrar, idéias extravagantes.
Assustou-se com a buzina de um carro que passou rente à calçada, levantando poeira, mas é preciso buzinar assim? Aproximou-se novamente da banca e percorreu com o olhar incerto o jornal que o vento sacudia. E se fosse tranqüilamente ler na praça? Mas a praça devia estar tão suja, que prazer podia se encontrar numa praça assim? Era um bom assunto para a carta, a sujeira dos nossos jardins, o único problema é que podia ficar comprida demais. E queria ser breve. Mas é difícil ser breve, Senhor Diretor. Tão difícil.
O Nordeste passa por uma forte estiagem que já destruiu mais de 90 por cento da produção agrícola, ao passo que a Amazônia sofre o flagelo das cheias com a chegada das chuvas - leu Maria Emília. Desespero na escassez. Desespero no excesso. Não tive ninguém, mas Mariana exorbitou: três maridos sem falar nos amantes. Rim quente. Se ela pudesse fazer uma plástica ainda ia continuar, mas Doutor Braga foi positivo, Se a senhora se opera, fica na mesa que seu coração não agüenta, está me compreendendo? Compreendeu. Ainda bem. A Elza não ficou? Outra vítima da publicidade, a querida Elza. Lastimava tanto a agitação de Mariana, se gabava de aceitar a velhice sem resistência, a pobre querida. Mas tanto ouviu contar das rainhas e estrelas de cinema chegando de longe para renovar a cara, que acabou se impressionando, era muito impressionável. O telefonema de madrugada, Dona Maria Emília, eu queria avisar que o enterro da vovó vai ser às nove horas, sabemos que eram tão amigas. Mas enterro de quem, meus Céus?! Da Elza? Mas a Elza morreu? Não, a Elza, não! estivemos juntas faz dois dias, ela estava esplêndida! Síncope? Síncope cardíaca? Mesmo em meio do meu pranto, senti as reticências do neto, cheguei a pensar num absurdo, quer ver que ela se matou? Enterro às nove. Quando me debrucei no caixão é que entendi tudo, a querida, a pobre querida com a cara toda pincelada de mercurocromo. Morreu na anestesia, quando o tal médico com nome de bicho, como é mesmo? bem, quando ele já se preparava para os primeiros cortes. Imagine, operar uma velha, Elza tinha seguramente seis anos mais do que eu. Mas é proibido envelhecer? Outro ponto importante, Senhor Diretor, devia haver um dispositivo regulando isso, essa velharada se operando por aí, já com começo de esclerose. Nem agonizantes escapam, lembra da prima do Leal que estava com aquela doença? Um mês antes da morte a pobrezinha inventou de puxar a cara e o médico sabia, o mercenário. O consolo é que ela morreu bastante remoçada, a tonta da Mariana veio me dizer na missa.
Um cinema? Olhou o céu de um azul pálido. Puro. Uma pena trocar aquela tarde por uma sala escura mas ir aonde então? Um chá? Mas será que restara alguma confeitaria decente por ali? Ficou olhando, crispada, o homem de cabelos emplastrados que se aproximou para examinar de perto o pôster colorido preso no varal inferior da banca. Ele usava brilhantina e mesmo sem ver-lhe a cara podia adivinhar a cupidez dos olhinhos ramelosos (deviam ser miúdos, ramelosos) colados ao biquíni vermelho da ruiva montada de frente numa cadeira, empinados os bicos dos seios duros. Botas, chapéu de cowboy, um revólver em cada mão. E o biquíni tão ajustado entre as pernas que se via nitidamente o montículo de pêlos aplacados sob o cetim, mais expostos do que se estivessem sem nada em cima. Olha aí, Senhor Diretor. A imagem da mulher-objeto, como dizem as meninas lá do grupo feminista. Meninas inteligentes, cultas, quase todas de nível universitário. Mas meus Céus, se ao menos fossem mais moderadas. Mais discretas. Reivindicar tanta coisa ao mesmo tempo, tanta mudança de repente não pode ser prejudicial? Um abalo nas nossas raízes, acho que estão correndo demais. Com a idade delas eu nem pensava, por exemplo, nessa palavra, prostituta. E a própria se levanta e começa a defender a profissão, pensei que não estivesse entendendo direito, profissão? E a jovem ali em carne e osso, precisei me beliscar, mas será que estou acordada? Até que tinha um jeitinho de secretária de uma dessas firmas americanas, o perfil mimoso que me fez lembrar uma antiga colega do Des Oiseaux, a Carola, que morreu antes da nossa primeira comunhão. Juro que me esforcei para compreender, participar de sua cólera, a mundana estava colérica com uma série de coisas realmente deploráveis que a polícia faz com essas mulheres. Então tentei ficar solidária na cólera e descobri que estava era com raiva dela, ora, que despautério! Será que não podia escolher uma outra atividade? Assegurar sua liberdade profissional, que topete! Quando se levantou a advogada de óculos, respirei: agora o nível das discussões vai subir, pensei, e até que no começo ela foi bastante feliz quando fez uma exposição das raízes históricas da condição da mulher, acho tão nobre essa expressão, condição da mulher. E de repente desatou a falar em clitóris, porque o clitóris, o clitóris... E com homens por ali, eu já não sabia onde enfiar a cabeça quando ela contou que não sei mais em que país eles faziam uma incisão no clitóris da mulher para que ela não sentisse nenhum prazer, o sexo transformado em agulheiro simples instrumento de penetração. E deu outros exemplos igualmente horríveis, concordo, uma crueldade essas práticas todas. Mas trazer isso num debate? Quis disfarçar, mostrar que não estava chocada mas quando dei conta de mim, estava aplaudindo mais do que todas, sempre acontece que por timidez, por medo do palco, acabo entrando no próprio. Se freqüentasse esse grupo, ia acabar como a Mariana, de jeans e dedos cheios de anéis. Os crimes contra a mulher, agora lembro, era esse o tema da mesa-redonda. Eu acuso, eu acuso! - repetia uma moça de bata rendada, grávida e defendendo o direito de abortar, tinha sido estuprada em plena rua e agora atacava até o Papa, Deus que me perdoe a heresia mas em casos assim extremos quem sabe seria mesmo aconselhável alguma medida que interrompesse a gestação? Fiquei com muita pena, Eu acuso, eu acuso! ela repetia com os olhos cheios de lágrimas, mas ao mesmo tempo, aceitar o aborto - oh, essa palavra tão forte. Fiquei deprimida, pensando na mamãe que não fez a tal incisão mas que nunca sentiu o menor prazer. E teve oito filhos. Oito. Quarenta anos de casamento sem prazer: um agulheiro calado. Mas já estou enveredando por outros caminhos, que difícil, meus Céus, dizer exatamente o que se deseja dizer, tanta coisa vem pelo meio. A Forma, fria e espessa, é um sepulcro de neve... E a Palavra pesada abafa a Idéia leve - escreveu Olavo Bilac, na Inania verba. Meu poeta predileto, Senhor Diretor, sempre gostei de poesia. Até declamava. E se no final da carta, à guisa de quem pede desculpas, transcrever esses versos? Mas espera, vamos pelo princípio. Senhor Diretor: antes e acima de tudo quero me apresentar, professora que sou. Paulista. Aposentada. Paulista aposentada, olha aí a tolice. Professora que sou, aposentada. Com duas rugas fundas entre as sobrancelhas de tanto olhar brava para as meninas, não vou escrever esse pedaço mas me lembro bem do começo dessas rugas, querendo com elas segurar aquela meninada que vinha espumejante como um rio, cobrindo tudo, tamanha força, uma classe depois da outra, uma depois da outra - por que me fazem pensar num rio sem princípio nem fim? Eu ficava sem voz de tanto pedir silêncio, a garganta escalavrada. Então olhava com essa cara e elas iam sossegando, durante alguns minutos ficavam com medo. Para recomeçar em seguida na maior algazarra, os peitinhos empurrando o avental, excitadas, úmidas, explodiam principalmente no verão. Eu evitava roçar nelas quando voltavam do recreio, mais forte o cheiro ácido de suor e poeira, mastigando ainda a banana, o pão com manteiga. Os gritos, os risos, a raiva tudo uma coisa só. No fim do ano, se despediam chorando, me davam flores. Me esqueceram todas. A marca ficou só em mim, nesse meu jeito de olhar as pessoas, vigilante, desconfiada. A verdade é que eu tinha medo delas como elas tinham medo de mim, mas seu medo era curto. O meu foi tão longo, Senhor Diretor. Tão longo.
Lançou um último olhar para a banca de jornais, onde o jornaleiro palitava os dentes e proseava com o homem da brilhantina. Uma altiva dama bem distante de toda essa frivolidade - os dois deviam estar pensando quando passou diante deles, pisando com firmeza, emocionada com a própria distinção. Foi indo pela calçada batida de sol, não era mesmo uma delicadeza aquele sol? Levou a mão à lapela do casaco para se certificar, a camélia ainda estava ali. Uma pequena extravagância, Senhor Diretor, hoje é o meu aniversário e como estava um domingo tão azul, prendi aqui esta flor. Meu costume é sóbrio, meu penteado é sóbrio. Uma sóbria senhora que se permitiu usar uma flor, Posso? Deixou que os lábios se distendessem num remoto sorriso que a fez pensar na Gioconda, tinha a gravura fixada no vidro da estante, o sorriso assim mesmo, reticente, maduro de sabedoria (apertou os olhos) e inabordável. Devia ser também uma mulher só, essa Gioconda. Adentrando a velhice (pisou com mais firmeza) e intacta. Apertou a bolsa debaixo do braço e cruzou molemente as mãos na altura do peito, num movimento de pontas de xale, as longas franjas (relaxou os dedos) pendendo - mas o que significa isso? Fechou o sorriso. Essa mulher aí de minissaia, vindo toda rebolante com o homem de óculos escuros. Varizes nas pernas. E a inconsciente com o saiote ridículo mostrando a rendinha da calça, mas e a polícia? Não tem mais polícia nesta terra? Logo atrás, uma pequena prostituta (catorze anos?) mal se equilibrando nos tamancos com grossas plataformas de cortiça, as pálpebras pesadas de purpurina verde. Colado ao seu calcanhar, um velho com perfil de caçador - meus Céus, mas onde anda o juizado de menores? Em pleno dia.
Um farrapo de papel higiênico azul levantou-se do lixo amontoado na esquina e veio em vôo rasteiro, ondulante no inesperado vento. Ela desviou-se rápida e a serpentina se enrolou no tornozelo do homem que vinha um pouco atrás, descascando uma tangerina. O homem ia atirando as cascas para os lados, semeador alegre. Realizado. Quando emparelhou com ele, ostensivamente ela indicou num movimento de cabeça a lixeira metálica, presa ao poste: São Paulo é uma cidade limpa - estava escrito na lixeira quase vazia. Mas o homem prosseguia cuspindo os caroços com força, como uma criança disputando com outra para ver quem consegue cuspir mais longe. Compete à prefeitura, Senhor Diretor, estudar urgentemente um projeto de educação desse povo que tem a idade mental daquelas meninas que eu ia fiscalizar quando saíam do reservado, Puxou a descarga?, eu perguntava. E a cara inocente de susto, Ai! esqueci. Mas será que só eu no meio desta multidão se importa? Se constrange? Parou desarvorada na esquina. Avançou o olhar por cima dos carros até o imenso cartaz de cinema no outro lado da rua. Filme nacional? Nacional, claro, se tem cama, mulher com cara de gozo e homem em trajes menores, só pode ser cinema brasileiro, uma verdadeira afronta, incrível, como a censura permite? Não, a carta não seria sobre o lixo, nada de misturar os assuntos, a sujeira interna, Senhor Diretor, essa é pior do que o lixo atômico porque não se lava com uma simples escova. Acelerou a marcha, devia ter outro cinema adiante, esperaria pela noite num cinema, agradeço muito, meus queridos, mas hoje já tenho um compromisso com um grupo de amigas, vão me oferecer um chá, vocês não se importam se marcarmos um outro dia? Protestaram com ênfase, até que se importavam e muito, oh, mas que tia ingrata, esnobando a sobrinhada no dia do aniversário. E bem no fundo será que não sentiram a maliciosa alegriazinha de quem acaba de ganhar uma tarde? E sem remorso, pois não foi ela que recusou? Agora ali estava, cercada de gente por todos os lados. E ainda mais solitária do que fechada no quarto, onde seus objetos lhe asseguravam a memória já na faixa da insegurança, badulaques. Retratos. Vontade de voltar depressa, mas não, saíra para fazer um programa, não posso estar com vocês porque me comprometi com minhas amigas. As amigas. Eleonora, de bacia quebrada, a coitadinha. Mariana, se embaralhando em alguma mesa, a cabeça já não dava nem para um sete-e-meio e inventou de aprender bridge, não estava na moda? Beatriz, pajeando o bando de netos enquanto a nora adernava no oitavo mês. E Elza estava morta.
No fim do quarteirão, um cinema menor exibia cartazes com cenas de caçadores num safári. Interessou-se pela foto da loura sendo atacada por um crocodilo enquanto o caçador (mas que homem lindo) era pisoteado por um javali. Ainda bem. O porteiro informou que o filme já ia adiantado, por acaso não preferia entrar na próxima sessão? Agradeceu mas não podia esperar, a temperatura estava caindo, logo mais seria inverno com um chuvisco e esquecera o guarda-chuva. Também esqueci o meu, ele disse e ela o encarou mais demoradamente, não era mesmo gentil? Em meio da invasão dos bárbaros, ainda restavam alguns antigos habitantes da aldeia, raros, sim, completamente derrotados (a roupa do porteiro mal guardara a cor) mas conservando o sentimento do respeito ao próximo, não, não pedia amor mas ao menos respeito. Desceu a escada apoiada ao corrimão. E sob o olhar dele tão zeloso, podia até jurar que a seguia, Cuidado com os degraus! Entrou emocionada no aconchego da sala escura. Pouca gente. Descansou a bolsa no colo, abriu o botão da gola da blusa e colocou os óculos. Na tela, um barbudo de cabelos esgrouvinhados espiava por entre a folhagem uma loura que tinha ido nadar nua na lagoa.
Ela foi afundando na poltrona enquanto a loura emergia do fundo na direção do homem, meus Céus, também aqui?! Fixou o olhar no casal todo enrolado na fileira da frente. Beijavam-se com tanta fúria que o som pegajoso era ainda mais nítido do que o barulho dos dois corpos amassando a folhagem na te(a. Um pouco adiante, na mesma fileira, outro casal que acabara de chegar já se atracava resfolegante, a mão dele procurando sob as roupas dela - encontrou? Encontrou. Podia sentir o hálito ardente dos corpos se sacudindo tão intensamente que toda a tosca fila de cadeiras começou a se sacudir no mesmo ritmo.
Encolheu-se. Feito bichos. O melhor era não ligar, pensar em outra coisa, que coisa? A manchete, tinha memória excelente, no colégio podia repetir uma página inteira lida duas ou três vezes, O Nordeste passa por uma forte estiagem, por uma forte estiagem mas onde anda o homem da lanterninha, não tem mais esse homem? Eram tão atentos os vaga-lumes acendendo suas lanternas na cara dos inconvenientes, mas não vai clarear? Se ao menos clareasse. Segurou com força no assento e o couro da poltrona lhe pareceu viscoso, sêmen? Calçou as luvas e juntou as pernas. Senhor Diretor: antes e acima de tudo, quero me apresentar, professora aposentada que sou. Paulista. Virgem. Fechou os olhos, virgem, virgem verdadeira, não é para escrever mas não seria um dado importante? Desabotoou o segundo botão, a blusa encolheu na lavagem ou seu pescoço estava mais grosso? Sentiu-se desalinhada, descomposta, mas deixa eu ficar um pouco assim, está escuro, ninguém está prestando atenção em mim, nem no claro prestam, quem é que está se importando, quem? E se por acaso o certo for isso mesmo que está aí? Esse gozo, essa alegria úmida nos corpos. Nas palavras. Esse arfar espumejante como o rio daquelas meninas, aquelas minhas alunas que eram como um rio, tentou detê-lo com sua voz rouca, com seus vincos e o rio transbordou inundando tudo, camas, casas, ruas... E se o normal for o sexo contente da moça suspirando aí nessa poltrona - pois não seria para isso mesmo que foi feito? Virgem, Senhor Diretor. Que sei eu desse desejo que ferve desde a Bíblia, todos conhecendo e gerando e conhecendo e gerando, homens, plantas, bichos. Mamãe tinha medo do sexo, herdei esse medo - não foi dela que herdei? Aquelas moças (á do movimento feminista, tão desreprimidas, tão soltas, será que são assim mesmo ou representam? Nenhum pudor, falam de tudo. Fazem tudo. Meu constrangimento quando me queixei para mamãe e o constrangimento dela quando me levou à médica, só uma mulher podia examinar minhas partes, baixava a voz quando dizia partes. Minha filha está com um pouco de corrimento, disse e fez aquela cara infeliz. Enrijeci as pernas quando o dedo enluvado me tocou e me lembrei dela dizendo à minha avó que cumpria seus deveres de esposa sem nenhum prazer até o amargo fim. Até o amargo fim, mamãe? A fonte do seu sofrimento era agora esta fonte de onde corria um fluxo. Tentei me descontrair na posição medonha (você está tão dura, menina, parece de ferro, relaxa que não vou te machucar) e olhei para mamãe. Ela era inteira uma estátua lacrimosa, apertando solidária a minha mão. Pronto, pode vestir a calcinha, ordenou a voz por entre minhas pernas. Nada grave, menina, você tem flores-brancas, às vezes as virgens padecem disso. Flores brancas. Secaram, Senhor Diretor, também elas foram secando. Seca tudo, a velhice é seca, toda água evaporou de mim, minha pele secou, as unhas secaram, o cabelo que estala e quebra no pente. O sexo sem secreções. Seco. Faz tempo que secou completamente, fonte selada. A única diferença é que um dia, no nordeste, volta a chuva.
Na tela, o homem do safári entrou na tenda e deitou-se sob o mosquiteiro, fumando tristíssimo porque a amante (mulher do amigo) estava de partida, era mais uma história de traição. Soubera de tantas, a começar por Mariana quando veio lhe pedir chorando que não ficasse brava, que não a condenasse, Não briga comigo, Mimi, mas estou apaixonada pelo Afonso! Que Afonso, Mariana? Só conheço um, o amigo do seu marido, não é o amigo do seu marido? E os olhos de Mariana se abrindo feito duas torneiras: Amigo íntimo. Foi implacável, brigou, Você é uma louca, Mariana, uma louca varrida, por que não escolheu ao menos um homem de fora, um estranho? E ela enxugando a cara perplexa, Mas Mimi, então você não compreende? A gente acaba se apaixonando pelos homens da roda mesmo. Afonso é parecido com meu marido, parecido comigo, a gente tem os mesmos gostos, freqüenta os mesmos lugares e um dia se olha e então é tarde. É tarde, ficou repetindo e sacudindo a cabeça desarvorada, os cabelos ainda castanhos, ainda com a cor natural, na velhice é que tingiu as mechas de louro-acinzentado. Não me condene, pediu tanto. Condenei-a, sim, e com que rigor. Não seria pura inveja? Esse meu sentimento de superioridade. Desprezo. Inveja, meus Céus? Eu tinha inveja da sua vida inquieta, imprevista, rica de acontecimentos, rica de paixão - era então inveja? Olha que você pintou e bordou, eu lhe disse outro dia e ela riu e seu olhar ficou úmido como se ainda fosse jovem, juventude é umidade. Os poros fechados retendo a água da carne sumorosa, que fruta lembra, pêssego? Que a gente morde e o sumo escorre cálido, a gente? Que os outros morderam, que sei eu dessa fruta? Entrelaçou as mãos no regaço. Assim no escuro as luvas pareciam tão brancas como se nunca tivessem tocado em nada. Fechou depressa os braços contra o corpo para não roçar com o cotovelo no homem que se sentou na poltrona ao lado. Coma com as asas fechadas, mamãe me dizia. Viva com as asas fechadas, podia ter dito. Sim, o meu amor por Deus. Mas tanta disciplina, tanta exatidão pode se chamar de amor? Se ao menos tivesse entrado para um convento, me abrasado nas vigílias, nos jejuns, dilacerando pés e mãos na piedade - que provas dei da minha devoção? É a vontade de Deus, mamãe costumava dizer e eu fiquei repetindo, é a vontade de Deus, mas seria mesmo? Que sei eu dessa Vontade? Minha nota subiu, professora? Só se o caderno estiver em ordem, sem rasgões ou nódoas, encapado com papel-manteiga verde. Manteiga com ou sem sal. Que sei eu desse rio com seus descaminhos? Mas não é no coração que vão dar todos eles? O coração, ele também não se irriga nesse amor?
Abriu a bolsa, tirou o lenço e enxugou os olhos. Através do vidro embaçado dos óculos pressentiu que o filme chegava ao fim e desejou ardentemente que ele se prolongasse, agora não queria mais a claridade, espera, estava tão desalinhada, meus Céus, deixa me abotoar e este cabelo, onde foi parar o grampo? Apalpou depressa a lapela do casaco, desprendeu a camélia e guardou-a no fundo da bolsa. A lágrima contornou-lhe a boca, limpou a boca, como fui me comover desse jeito? Feito uma velha tonta, espera, eu estava querendo dizer que a nossa cidade, Senhor Diretor, que esta pobre cidade - que é que tem mesmo esta pobre cidade? Acabei falando em outras pessoas, em mim, espera, vamos começar de novo, sim, a carta. Senhor Diretor: antes e acima de tudo. Antes e acima de tudo, Senhor Diretor. Senhor Diretor: Senhor Diretor.


In “Seminário dos Ratos”

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O QUE É ?

Minha foto
Sou um pouco de tudo misturado como um monte de coisas que ganhei de pessoas que passaram pela minha vida e com um toque de acaso na tarde confusa que nao sei como me definir