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sexta-feira, 29 de maio de 2009

Memórias de um leitor por Ângela Maria Crupzacki

Memórias de um leitor

Lembro-me com saudade dos tempos em que a leitura era algo importante na escola.
A princípio, me recordo de que eu não era uma leitora muito assídua, não me interessava muito não. Não sei se os livros é que eram muito caros, ou era eu que não tinha condições de comprá-los .Por outro lado a escola que eu estudei não nos proporcionava momentos de leitura.Mas enfim , quando fui estudar no Instituto de Educação, tínhamos que ler uma obra a cada bimestre e foi aí que comecei a ter problemas, pois não estava acostumada a ler.
A professora escolhia a obra a ser lida e estudada pelos grupos de alunas. Então em uma ocasião ocorreu que eu e meu grupo, mais ou menos com o mesmo perfil, decidimos alugar uma fita dessas de vídeo cassete e assistir ao filme “ Lucíola” , achamos que seria possível desenvolver um trabalho sobre a obra, apenas assistindo e olha só o que aconteceu:
A professora começou a nos questionar sobre as passagens do livro, após termos apresentado o trabalho. Ficamos perdidas, pois havia algumas passagens do livro que o filme não mostrava direito então começamos a cair em contradição e nos perder no assunto. Pois há uma diferença entre contar sobre um livro que leu do que contar sobre um filme que assistiu.E foi uma vergonha. Vergonha nos dois sentidos: a de não ler o livro e querer enganar a professora, pois ela sabia que nós não tínhamos lido e mais ainda, a vergonha de não se interessar pelo trabalho, achando que seria fácil mentir e que sairia tudo bem.
Desse momento em diante, nunca mais tive esse tipo de atitude, foi na verdade uma grande frustração para nós e mais ainda para a professora. “Lemos “vários outros e um livro que ficou em minha memória que foi o livro do bimestre seguinte, ” O Cortiço”, que li com tanto empenho e vontade que nosso trabalho ficou muito interessante, me senti gratificada. O bom da vida é isso. Saber que aprendemos com os erros e que tudo passa. E passou, lemos muitas outras obras e continuo lendo até hoje, não tanto quanto deveria, mas devagar chegarei lá.

Ângela Maria Crupzacki

Memórias de leitor por Alvaro Mariel Posselt

Memórias de leitor

Minhas memórias de leitor são de uma meia vida, tardias. Influência da família para leitura: nenhuma. O pai não teve tempo, foi com Deus quando eu ainda tinha nove; a mãe ficou com três filhos ainda pequenos. Da infância, apenas a lembrança de que recortávamos os gibis e montávamos dentro de uma caixinha, fazendo uma espécie de filme, cujos recortes iam passando e dando um aspecto de desenho animado.
Na adolescência, a veia romântica, o sonhador. Não deu outra, rabiscava meus poeminhas açucarados e com rimas pobres. Bobeirinha, mas o primeiro pilar de leitor. A base sólida veio mesmo aos dezesseis, com um amigo de trabalho. Quando íamos ao centro, ele só queria saber da biblioteca, e eu, só de comprar vinil. Martelou, martelou. Quando me vi, já estava envolvido. Primeiro foram os livros de poesia: Drummond, Bandeira, Castro Alves, Leminski, entre outras. Helena Kolody era a minha preferida. Depois, veio a prosa. Os livros que ele indicava como espécie de lição de casa eram: O velho e o mar, Revolução dos bichos, Fernão Capelo Gaivota. Tinha um livro para ler no serviço e outro em casa. É impossível pensar em leitura e não se lembrar do amigo. Dedico estas memórias a ele.
Com outro amigo, conheci novas leituras. Cortázar, Herman Hesse, Borges, Henry Miller, Bukowski, o universo foi se abrindo. Então, veio o haikai, a faculdade dos meu sonhos. Desenhava-se agora não só o leitor, mas também o escritor. Veio o gosto pela prosa e poesia minimalistas. Fiquei surpreso quando me vi escrevendo humor. Logo eu, um cara tímido, quietão! Já plantei árvore, tive filho, agora só falta o livro.
Ler para mim vai além das linhas e entrelinhas. Se Ítalo Calvino criou um personagem que viveu em cima das árvores e nelas explorou o mundo, também posso fazê-lo, mesmo que essas árvores sejam apenas papel.
Como eu disse, minhas memórias são de uma meia vida, mas eu tenho uma vida e meia pela frente para ler.

Alvaro Mariel Posselt

As lembranças de leitura por Maria Luiza Suares

As lembranças de leitura que tenho, me remetem à muitos e muitos anos atrás, quando eu era ainda uma criança de mais ou menos 5, 6 anos de idade.
Éramos sete: eu, duas irmãs, dois irmãos e meus pais.
Naquele tempo, a vida era dura, e meus pais enfrentavam muitas dificuldades para criar os cinco filhos.
Não tínhamos acesso a muitos livros, mas, me lembro que certa vez, meus pais compraram uma coleção de livrinhos de estórias infantis, e eu adorava lê-los.
Até hoje, me lembro de alguns títulos: Ali Babá e os quarenta ladrões, O soldadinho de chumbo, O príncipe Ricardo, O patinho feio e Os três porquinhos.
Todos eles tinham figuras muito bonitas e que me fascinavam. Acho até que, eu os lia pelos desenhos que continham.
Tempos depois, eles compraram outra coleção. Eram livros de capa dura, muito bonitos. Eram os Contos da Carochinha e Jogos de Criança, os quais ensinavam várias brincadeiras para brincar com crianças.
Mais tarde, eles compraram a Enciclopédia Delta Júnior.
O primeiro emprego do meu irmão mais velho, foi de vendedor de enciclopédias. Como esses livros eram caros, ele não conseguia vender nada. Meus pais, então, fizeram um esforço e compraram a enciclopédia para ajudá-lo e incentivá-lo.
Ah!! Mas como era bom de ler...A enciclopédia trazia tantas curiosidades e coisas interessantes, enfim, cultura geral.
Foi com ela que aprendi que existem homens bem pequeninos que se chamam pigmeus e que existe uma mosca chamada Tse-tsé, que se morder uma pessoa transmite uma doença que a deixa com muito sono. Lembro até hoje que cor era a capa: vermelha.
Meu pai quase não lia nada, mas minha mãe é uma amante da leitura até hoje, com setenta e oito anos. Sempre a vi com livros à cabeceira da cama. Como não tínhamos condições de comprar, ela muitas vezes, emprestava e lia, lia muito. Hoje, apesar da idade, ela enxerga muito bem e lê todos os dias. Como sei que ela gosta de ler, sempre que posso a presenteio com livros.
Passei um grande período da minha vida sem ler muito: da infância até a fase adulta, não sei o porquê.
Quando entrei na faculdade, precisei ler muito e voltei a ler.
Hoje, leio menos do que gostaria. Leio às vezes, não sempre. Sou amante das artes: literatura, pintura, desenho, escultura, teatro. No momento tenho me dedicado mais às artes plásticas e quando tenho algum tempo livre, ao invés de ler um livro, eu pinto, desenho ou faço esculturas, mas eu gostaria de ler mais.
Penso que o dia que eu me aposentar, poderei ler mais e me dedicar em tempo integral às artes em geral.

Maria Luiza Suares

SOBRE A (DE)FORMAÇÃO DE LEITORES NA ESCOLA - Comentado por Reinoldo Hey

SOBRE A (DE)FORMAÇÃO DE LEITORES NA ESCOLA

O texto de Elisiane Tiepolo é consistente, bem engendrado, persuasivo.De fato, a Escola tem trabalhado de forma equivada na formação de novos leitores. Quanto à deformação, precisamos de uma reflexão mais aprofundada.
Creio que tudo na vida forma, deforma e transforma. Mas o pior de tudo é quando CONFORMA.
Conformamo-nos com uma escola que divide um turno por cinco: cinco disciplinas que se revezam diante de quarenta e cinco sujeitos que atônitos assistem a cinco aulas que em quase nada interagem, não dialogam, não se “intertrans...disciplinarizam”. Entre elas, a de Língua Portuguesa, no Ensino Fundamental ; Língua Portuguesa/Literatura, no Ensino Medio. Há quem chame a aula de Literatura em LITReratura (um porre né!).
Conformamo-nos quando aceitamos a forma quartelizada (fila indiana?) de posicionamento dos alunos na sala.
Conformamo-nos com a neurose dos cinqüenta minutos, com aquele sinal estridente do hospício escolar. Com a aula de Educação Física na frente das salas de aula, com toda a histeria a que se tem direito ( e nossas próprias gargantas adoram).Com um pedagogo que mitifica o livro de chamada, esse instrumento de tortura do professor, ao invés de sugerir,apre-
sentar propostas, ser parceiro do professor e não substituto do ausente diretor.
Conformamo-nos com a biblioteca-cafua (“O cortiço”, A.Azevedo), sem bibliotecária competente, sem livros de qualidade , sem a presença de alunos (“Não há espaço para tanta gente!!!”). Estamos formando leitores ácaros ( ou ácaros leitores)?
Conformamo-nos com colegas “formados” por Presidente Prudente ( um sábado por ano) , pela Vizzivalle ( fica no Paraguai ou na China?), limitados intelectualmente, incapazes de fazer a leitura mais básica que existe: a da vida. Alguns são formados pela “Bill Gattes Universeition e Enroleition Ltda”, vulga Internet.
Conformamo-nos com a transformação da escola em centro de distribuição de leite (“Leite das Crianças” – não seria... “para as crianças”? ). Leite há! Livro... Quero criar o “Livro às crianças”, depois o “Livro Família”, após o “Livro Fraterno”. Estou eleito?
E as aulas de Literatura, hein?! Conformamo-nos também com elas. Primeiro o movimento literário, depois a biografia do autor e um fragmento daquilo que consideramos sua melhor obra, devidamente acompanhado de um resuminho mastigado e um comentário que “vai fundo” na análise . “O profi não é o máximo?!” . No Ensino Fundamental , uns livrinhos finos (os preferidos da garotada) , enquanto se corrige a prova, se lança a nota etc.
Sugestão: aula de leitura em sala redonda, ventilada, com poltronas, almofadas, suco natural , silêncio, nenhuma obrigação e muito, muuuiiiitos livros: redondos, quadrados, triangulares, ilustrados, sem ilustração,” bestas-sellers”, de auto-ajuda, clássicos, jornais, revistas ,de piadas , de pensamentos, de amor, de ódio, de traição, de empreendedorismo, de religião, de poesias, de contos , de crônicas, de romances, de ensaios... de tudo! Não teminoua leitura? “Leva pra casa, queridinho. Quando terminar, pega outro...”. Um turno inteirinho paga “não fazer nada” , a não ser LER, LER,LER! Não, não vai cair em prova, não vai cair em nada , a não ser na tentação de LER,LER,LER...
Daí, anos depois , eles aprenderão a votar, votar, votar. E os políticos a trabalhar, trabalhar, trabalhar. E a mídia a criar, criar, criar para educar, educar, educar...
Voltaremos a ter família. E seus componentes até conversarão . Trocarão experiências, se ajudarão.
........
São vinte e uma horas e minha “viagem na maionese” está chegando ao fim.Enchi uma folha de “lingüiça” e acabei pouco falando do texto de Elisiane.
Elisiane, seu texto está muiiiiiiito bom. Parabéns! Sua nota já está lançada.Um abraço do...
( Quem sou eu mesmo???)

Rsrsrsrs!!!!

Reinoldo Hey

Literatura nossa de cada Dia: A (de) formação de leitores na escola

Literatura nossa de cada Dia: A (de) formação de leitores na escola

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Memórias de leitor

Foi de tanto ouvir histórias na beira do fogão à lenha ou da máquina de costura que fiz minhas primeiras viagens por um passado que não era meu, mas do qual tomei posse através daqueles relatos cheios de aventura, drama, comédia, enfim todos os gêneros que contados por minha mãe eram ricos em detalhes, afinal ouvir histórias da mãe nos dá a oportunidade de perguntar o tempo todo, fato que dá origem a notas de rodapé da oralidade.
Depois veio a escola primária, com professoras inesquecíveis como Dona Maria da Luz, a que me deu o primeiro livro “Alice no País das Maravilhas” (ainda tenho contato com ela), ele veio de presente em meu aniversário, era MEU, embrulhado em um bonito papel, é claro que o DEVOREI, depois dele vieram os gibis, as fotonovelas e até os almanaques de farmácia, livros de histórias infantis cheios de lindas gravuras e com letras enormes. No ginásio (assim era denominado o que hoje corresponde ao ensino de 5ª à 8ª séries) lia os benditos livros obrigatórios, os mesmos que são pedidos até hoje, não tinha nem um interesse por aquelas leituras, mas os lia apenas pela obrigação. Gostava mesmo era de ler livros de aventura, romances, mas faltava dinheiro para comprar, então ia mais cedo para o colégio e fazia visitas constantes à livraria que ficava ao lado para ler os livros que ficavam na estante e que enchiam meus olhos de curiosidade, mas um belo dia fui descoberta lendo aqueles tesouros sem tê-los adquirido e fui convidada a me retirar da livraria. Comecei a freqüentar as bibliotecas públicas, assim poderia ler sem constrangimentos. Depois disso vieram Agatha Christie, e toda uma gama de Best Sellers, Seleções, até que por fim já na graduação li todos os livros indicados desde alguns cantos da Ilíada de Homero passando por Camões, José de Alencar, Machado, Edgar Allan Poe, Shakespeare entre tantos outros que fizeram da obrigação da leitura um grande prazer. Hoje releio textos de que gostei muito, tenho livros que ainda não li (por absoluta falta de tempo), mas que estão lá, na estante, esperando por mim.
Não dou aulas, mas fiz alguns leitores no meu trabalho que na época da graduação liam tudo o que eu lia de tanto me ouvirem comentar a respeito daquilo que eu estava lendo e gostando tanto, e até hoje ainda me pedem para que lhes indique algum livro “legal” como aqueles.

Eleana Aparecida Rosendo Hoffmann

terça-feira, 26 de maio de 2009

A (de) formação de leitores na escola




Elisiani Vitória Tiepolo*

Resumo: A escolarização do texto literário, mais do que promover a formação de leitores, tem contribuído para um afastamento dos alunos desse gênero textual. Este texto tem o objetivo de trazer novamente à discussão a especificidade do texto literário como manifestação artística e a desburocratização da relação texto/professor/aluno. Isso porque, apesar dos diferentes esforços já realizados, a escola ainda não conseguiu se transformar em um ambiente leiturizador, onde ler é uma necessidade que se quer compartilhada e vivenciada intensamente. Nesse sentido, a condição básica para que o professor possa ser mediador da caminhada rumo à formação do leitor, criando situações significativas de leitura assim como espaços de interlocução entre leitor/texto/outros leitores, é que ele mesmo seja leitor de fato.

Navegou
no veleiro dos livros.
Desembarcou
e conferiu.
E o mundo que viu
não era o que imaginou.[1]
Sempre foi objetivo da escola formar leitores, e a disciplina escolhida para desempenhar essa tarefa já se chamou Português, Comunicação e Expressão e Língua Portuguesa. Atualmente, muitas escolas dividem o conteúdo da disciplina em Literatura, Redação e Língua Portuguesa. O que parece não mudar, ano após ano, é a certeza de que a escola consegue o oposto do que se propõe, ou seja: os alunos, na maioria das vezes, têm aversão à leitura, buscam resumos na internet, copiam trabalhos uns dos outros, lêem, quando muito, um ou outro livro dito obrigatório. Esse afastamento da leitura pode ser verificado em diferentes estudos. Por exemplo, segundo dados do Instituto Paulo Montenegro, em parceria com a Ação Educativa, em 2004, apenas 25% dos brasileiros com mais de 15 anos dominavam plenamente a leitura e a escrita. Os outros 75% estavam assim distribuídos:
8% da população não sabem ler nem escrever;
30% da população são de analfabetos funcionais, ou seja, pessoas que conhecem letras, decodificam, mas não entendem o que lêem e não escrevem;
37% da população conseguem ler apenas uma notícia simples, curta e escrever textos igualmente simples.
Coincidentemente (ou não), apenas 20% dos brasileiros puderam concluir o Ensino Médio, e, desses, uma pequena parcela teve acesso ao Ensino Superior, podendo ser considerados leitores, independente da profissão que venham a exercer. O grande poeta gaúcho Mário Quintana disse que o pior analfabeto é aquele que aprendeu a ler mas não lê. E, no Brasil, como mostram os dados, quase 70% da população passou pela escola (pública ou privada) e não lê por razões não apenas financeiras, mas especialmente pedagógicas.
O que mais chama a atenção nesses índices de exclusão é que, ao entrar no Ensino Fundamental, por volta dos 6 ou 7 anos, ou antes, na Educação Infantil, as crianças têm uma atração muito grande por livros, papéis e canetas, o que é facilmente observado por seus responsáveis e educadores: a escrita (ler e escrever) é uma brincadeira tão prazerosa quanto outra qualquer, a ponto de a criança querer que o adulto leia para ela sempre e, de preferência, o mesmo livro; queira brincar de ler (fazendo a pseudoleitura) e escrever (inclusive em paredes...); muitas vezes carregue uma mochila cheia de revistinhas, livros e todo tipo de papel onde rabisca anotações, faz desenhos, cria bilhetinhos que tem o maior prazer de entregar. Quase todas querem recontar uma história lida, ter nas mãos um livro que foi lido e, se levadas à biblioteca, não se conformam em pegar apenas um livro. As crianças descobrem no livro - na escrita, portanto, basta notar como interagem com o texto, escrevendo/rabiscando nele - um brinquedo tão fascinante quanto um cabo de vassoura que se pode transformar em cavalo. Isso porque sua experiência de leitora é lúdica, construída em situações de aproximação amorosa com o outro, pois a leitura, antes da escola, está associada ao calor do corpo, à voz, ao toque da pessoa que conta uma história e que, na maioria das vezes, é a quem se ama e por quem se é amado. O texto é mediador dessas trocas amorosas entre aquele que lê e aquele que ouve, um momento de compartilhamento afetuoso. Antes da escola, a leitura é a possibilidade de transitar por outros mundos, tempos, de viver outras emoções, é o faz de conta que eu era o herói e você a princesa, onde tudo é possível e se pode abandonar a brincadeira e voltar a brincar depois, se assim se quiser. Ou seja, antes de entrar na escola a criança/leitora está em processo de formação (como criação, construção, conformação) em situações sociais de leitura: tv, placas, revistas, jornais, livros, marcas nas roupas, out doors, embalagens, documentos, faixas, computador, etc, tendo na leitura uma experiência lúdica, prazerosa, significativa, compartilhada.
Aí vem a escola e sua (boa) intenção (chamada tecnicamente de objetivo) de tornar a leitura um hábito. E o gênero textual eleito para essa tarefa é o literário. Para isso, a criança/aluno será exposta a uma série de atividades de leitura que, sistematizadas, irão permitir que se atinja esse objetivo. Nesse sentido, foram sendo criadas e aprimoradas várias técnicas, desde as famigeradas fichas de leitura até as dramatizações dos textos lidos. A atividade ganha mais importância do que o texto que se lê, agora, como pretexto para se fazer o que é importante: as tarefas que criarão o hábito de ler e pelas quais se pretende verificar se houve interpretação do texto lido. Ou seja, depois que entra na escola, a criança passa por um processo de deformação (descaracterização, desfiguração, desfazer a forma ou aspecto original). E o objetivo de formar o "leitor crítico" e "criar o hábito pela leitura" se traduz em uma metodologia que será adotada ao longo de quase toda a escolarização: ler para resumir, responder questões de caráter informativo, dramatizar, debater, tudo em função de uma nota. Assim, em pouco tempo, a criança/leitora será transformada em um aluno/não-leitor por meio de uma metodologia que se constrói a partir de alguns mitos, outros equívocos e muito autoritarismo.
Um dos principais mitos em relação à leitura do texto literário está no fato de, muitas vezes, a literatura ser considerada como uma forma superior, mais nobre da linguagem, restrita a alguns capazes de produzi-la e outros poucos de consumi-la. Nesse sentido, as bibliotecas escolares passam a ser locais sagrados, pouco freqüentados, onde são resguardados os livros - portadores desses textos sacralizados - e, portanto, inacessíveis, como objetos e forma de linguagem. Sendo inacessíveis, os textos literários acabam perdendo espaço para os textos considerados mais próximos desse aluno/leitor, ou seja, para os textos informativos ou arremedos de textos literários que contém informações travestidas de uma pseudo-linguagem literária.
Outro mito a ser considerado é aquele que sustenta a idéia de que o texto literário é paradigma do bem escrever. Muitos professores dizem a seus alunos que a leitura desse tipo de texto é a condição para que se possa aprimorar o texto escrito e muitos livros didáticos usam como exemplos para a explicação de tópicos gramaticais trechos de clássicos da literatura. Nega-se o fato de a linguagem literária ser essencialmente transgressora não só enquanto tradução do mundo, mas como forma de dizê-lo. E, para isso, inúmeras vezes rompe com a norma padrão estabelecida. Sonega-se do aluno a informação de que o que hoje se impinge a ele como modelo de linguagem já foi considerado “licença poética”, “figura de linguagem”, ou quaisquer outros nomes que se quiserem dar para explicar um fato lingüístico não previsto na Gramática Normativa (que depois de um tempo irá incorporar a “licença poética” como norma, caso o escritor que dela fez uso ganhe prestígio acadêmico). Dessa forma, o aluno passa a ver o texto literário por um viés utilitarista, contrário à sua própria essência, que é, como sintetizou o poeta Paulo Leminski (1997, p 78), sua condição de inutensílio: As pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa. Servir. Prestar. O serviço militar. Dar lucro. Não enxergam que a arte (a poesia é arte) é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de um mundo da liberdade, além da necessidade. As utopias, afinal de contas, são, sobretudo, obras de arte. E obras de arte são rebeldias.
Finalmente, não se pode deixar de citar o mito de que crianças e jovens não só não gostam de ler, mas odeiam ler. Se há uma verdade nisso está no fato de os alunos detestarem ler o que a escola pede que seja lido e que, na maioria das vezes, servirá como instrumento de avaliação (leia-se nota). Fora da escola lêem e muito, desde revistas sobre os mais variados assuntos (basta observar o número de publicações destinadas às crianças e adolescentes disponíveis nas bancas de jornal), consomem best sellers (o caso mais recente são as aventuras do menino feiticeiro Harry Potter), passam horas navegando na Internet lendo de tudo, sabem decor várias músicas longuíssimas (as do grupo Legião Urbana são um bom exemplo, assim como os intermináveis raps).
Esses e outros mitos geram certos equívocos metodológicos. Um deles é tratar a leitura de forma generalizada, sem fazer distinção entre os diferentes gêneros textuais. Essa indistinção faz com que o texto literário seja associado às atividades voltadas para a criação do hábito de ler, enquanto os demais textos, trabalhados no livro didático ou selecionados pelo professor, sejam vistos na perspectiva do ensino de língua portuguesa (à tríade leitura, gramática, redação). Ou seja, cria-se a idéia de que o texto literário é um artigo de luxo, oferecido ora como prêmio ora como penitência necessária. Outro equívoco bastante comum é a tentativa de criar o hábito de ler, como se o leitor se formasse a partir de atividades mecânicas de repetição do ato de ler.
Há, ainda, a postura autoritária da escola em relação à leitura. Primeiramente porque o professor determina o que deve ser lido a partir de critérios baseados em necessidades escolares (livros canônicos, livros solicitados em concursos, livros disponíveis na biblioteca, livros importantes para o desenvolvimento de projetos, etc), que desconsideram a caminhada do leitor. Além disso, há o controle da leitura (e do leitor, visto como aluno a ser avaliado) que a escola busca fazer em provas e fichas de leitura, procurando medi-la quantitativamente, o que só é possível por meio da padronização da compreensão do texto literário, usando, para avaliação, modelos prontos com respostas fechadas.
Para que essa postura baseada em mitos, equívocos e autoritarismo possa ser rompida, é necessário se estar constantemente revendo os pressupostos teóricos que embasam o trabalho com a leitura, especialmente do texto literário, discutidos, no Brasil, especialmente na década de 90. Uma questão essencial, nesse sentido, está em não se perder de vista a especificidade do texto literário enquanto manifestação artística. Sendo arte, a literatura contém carga emocional, ideológica, lingüística que refletem o modo de sentir de seu criador – sujeito histórico e social -, sendo um traço de união entre seu criador e os outros membros da sociedade.. (VASQUEZ, 1968, p 12) É preciso, então, que um leitor mais experiente – o professor – faça a mediação entre esse mundo esteticamente recriado no texto literário e o aluno, possibilitando-lhe nele transitar e entender que através dos elementos da obra (personagens, tempo, espaço) devidamente trançados, o autor dá forma e expressa uma perspectiva cultural – que se origina de sua ideologia, de seu universo de valores, de sua maneira peculiar de refletir e ver a realidade, o que suscita, no leitor, intuições a respeito da vida humana. (SILVA, 1993, p 22)
A linguagem literária é uma dentre as inúmeras linguagens nas quais estamos mergulhados e pode ser definida como um conjunto de formas que representa outras linguagens, produzindo uma nova realidade conscientemente objetivada pelo escritor em sua obra. A criação dessa realidade através da linguagem tem seu valor estético na maneira como o artista imprime determinada forma a uma matéria, em como objetiva sua cosmovisão. Para Marx (1986, p 24), a arte é uma das formas possíveis de que o homem dispõe para conhecer e se dar a conhecer. Ou seja:
O homem é o objeto específico da arte, ainda que nem sempre seja o objeto da representação artística. Os objetos não humanos representados artisticamente não são pura e simplesmente objetos representados, mas aparecem em certa relação ao homem; ou seja, revelando-nos não o que são em si, mas o que são para o homem, isto é, humanizados. O objeto representado é portador de uma significação social, de um mundo humano. Portanto, ao refletir a realidade objetiva, o artista faz-nos penetrar na realidade humana. Assim, pois, a arte como conhecimento da realidade pode nos revelar um pedaço do real, não em sua essência objetiva, tarefa específica da ciência, mas em sua relação com a essência humana. Há ciências que se ocupam de árvores, que as classificam, que estudam sua morfologia e suas funções; mas onde está a ciência que se ocupa das árvores ‘humanizadas’? pois bem: são precisamente estes objetos que interessam à arte.
Nessa perspectiva, é quase certo que o próprio aluno tenha alguma resistência ao texto literário, pois, em uma sociedade capitalista onde “tempo é dinheiro” e o “objetivo é vencer” parece de pouca utilidade ler um poema ou um romance. Por isso, será necessário ao leitor compreender que ler textos literários não é mesmo útil nesse sentido pragmático, mas é essencial ao nosso processo de humanização. Como afirmou José Paulo Paes, em entrevista à Revista Veja, a poesia (a arte) existe e basta, como a vida existe e basta. Esse é, aliás, o encanto da poesia. É absolutamente inútil. Tanto quanto um passarinho, uma borboleta. Mas a poesia ajuda a fruir a vida.[1] Bem se vê que o âmbito do texto literário não é o mesmo em que se encontram os demais gêneros textuais. Não vai aí nenhum juízo de valor, mas simplesmente o fato de que as estratégias para a atribuição de sentidos a um texto literário não são as mesmas utilizadas para a atribuição de sentidos a textos de outros gêneros. O texto literário exige participação direta do leitor - co-autor - disposto a completar as lacunas do texto, a desdobrar sentidos, a arriscar-se a “Ler pelo Não”, como sugere Leminski (1987, p 87):

Ler pelo não, quem dera!
Em cada ausência, sentir o cheiro forte
do corpo que se foi,
a coisa que se espera.
Ler pelo não, além da letra,
ver em cada rima vera, a prima pedra,
onde a forma perdida
procura seus etcéteras.
Desler, tresler, contraler,
enlear-se nos ritmos da matéria,
no fora, ver o dentro e, no dentro, o fora,
navegar em direção às Índias
e descobrir a América.

Ler textos literários, então, exige do leitor a utilização de estratégias de leitura muito diferentes das que são utilizadas para ler outros gêneros textuais (“Ler pelo não, além da letra”). Enquanto será possível ao professor exercer um controle maior sobre os textos informativos, que têm como característica a objetividade e clareza e permitem quase que a mesma atribuição de sentido para diferentes leitores, pois são monossêmicos, o texto literário, sendo polissêmico, pode provocar múltiplas entradas e saídas no mesmo texto pelo mesmo leitor, que sai em busca da Índias e pode descobrir a América e, mesmo já tendo descoberto a América, ao retornar lá vá dar nas Índias.
Não é possível, então, reduzir-se o trabalho com o texto literário a questões meramente informativas, tais como identificação de personagens, resumo do enredo, análise formal de poemas, identificação de figuras de linguagem, etc. Mais do que ser capaz de dar informações sobre um texto literário lido, o leitor precisa perceber a carpintaria única na qual tal texto foi moldado, os múltiplos sentidos por ele criados e compreender de que forma ele se faz único. Além disso, relacionar o texto lido ao conjunto da obra de seu autor, deste ao contexto estético e histórico em que se insere e qual sua ligação com a contemporaneidade. E para que esse percurso possa ser feito pelo aluno/leitor o papel do professor/leitor mais experiente é essencial. Será p professor quem poderá suscitar atividades intertextuais diversas, a troca de diferentes leituras, o estabelecimento coletivo de critérios de análise, a pesquisa em outros textos. Tais atividades têm como função mediar a relação entre o texto e o leitor, dando-lhe condições de interagir com o texto na medida em que se explicitam os recursos literários nele presentes. De forma alguma as atividades propostas devem visar o controle, a verificação ou medição da leitura, pois, ao contrário disso, é inerente ao texto literário a liberdade, a multiplicidade de sentidos, o imprevisto.
O papel do professor deveria ser o de promover um espaço de conversação rumo à descoberta, um espaço de aventura onde
caminhos alternativos que se cruzam, em várias direções, à procura... Digamos que à procura de um roteiro possível. O que importa não é definir o roteiro e sim procurá-lo, já que, uma vez definido, a conversação chega ao fim, e o que buscamos – não é mesmo? – é a conversação interminável.
É justamente essa a idéia que faço da literatura, um inesgotável repositório de bússolas e astrolábios, cartas de navegação, portulanos, roteiros e derrotas, à espera de serem manuseados por alguém sequioso de aventura. E a viagem só fará sentido se soubermos navegar à deriva. Porto, qualquer um serve, desde que seja apenas escala provisória. (MOISÉS, 1996, p 17)
Há também que se discutir o desejo da escola em criar o hábito da leitura. Isso porque ninguém se faz leitor mecanicamente, como pressupõe a idéia de hábito, mas movido pela vontade, pelo interesse, pelo desejo. A cada ação mecânica da escola em direção à leitura, o aluno reage se afastando dela, pois, se nos foi possível criar hábitos como escovar os dentes, dormir no mesmo horário e tomar banho por imposição de uma autoridade que nos obrigava a repeti-los, certamente essa metodologia não se aplica à leitura, uma atividade que exige operações cognitivas de ordem superior (inferência, evocação, analogia, síntese e análise). Sabe-se, por exemplo, que o leitor é guiado por suas expectativas do que está escrito. Ou seja, o leitor faz uso da informação visual – o que está impresso – e de sua informação não-visual – conhecimento do mundo, conhecimento da linguagem, conhecimento da própria leitura – para prever informações contidas no texto impresso. (KATO, 1988, p 30) Além disso, o leitor interage com o texto buscando as intenções do autor por trás das palavras efetivamente escritas, atuando como membro cooperativo de uma interação comunicativa. (KATO, 1986, p 74)
Diferente de se propor a criar o hábito da leitura, a escola deveria, então, criar situações de compartilhamento de leituras em espaços regulares e significativos, onde diferentes leitores tivessem acesso aos mais diferentes livros e autores e pudessem conversar sobre suas experiências de leitura, produzir outros textos que registrassem essas experiências, tais como resenhas, paráfrases e paródias para serem socializadas entre os alunos da turma, na escola e com a comunidade. Textos sobre os textos lidos que serviriam como ponto de partida (ou chegada) para outros leitores, Nesse ambiente, o professor seria um leitor mais experiente que apresentaria livros, autores, textos, compartilhando as suas próprias experiências de leitor. Eduardo Galeano, em seu “Livro dos Abraços” (2002, p 28), cria uma belíssima imagem para essa experiência de compartilhamento por meio da arte:
A função da arte/1
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar.
Viajaram para o Sul.
Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando.
Quando o menino e o pai alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imansidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.
E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai:
_ Me ajuda a olhar!
Há pelo menos duas idéias importantes em relação à leitura do texto literário e à formação do leitor que podem ser desdobradas do texto de Galeano: primeiramente, o fato de que conhecer um texto literário significa necessariamente ter acesso direto a ele. Isso porque por melhor que seja a sua descrição, nenhuma poderá causar a sensação de maravilhamento e/ou estranhamento que estar diante dele provocam. Em segundo lugar, o fato de, diante desse maravilhamento e/ou estranhamento, sentirmos a necessidade de contar com a experiência alheia, alguém que poderá disponibilizar suas “cartas de navegação, portulanos, roteiros e derrotas”, pois a partir dessa experiência acumulada pode se dar a mediação entre o conhecido e o desconhecido. Então, só será um mediador do texto literário o professor que tenha o que compartilhar, isto é, um professor leitor de fato, e não um burocrata da leitura que trabalha e conhece apenas os livros de um programa escolar pré-estabelecido.
Trata-se de transformar a sala de aula em um ambiente de leiturizador, na medida em que oferece as condições necessárias para a prática da leitura real, com leitores reais. De acordo com Foucambert (1994, p 31), para aprender a ler, enfim, é preciso estar envolvido pelos escritos os mais variados, encontrá-los, ser testemunha de e associar-se à utilização que os outros fazem deles – quer se trate de textos da escola, do ambiente, da imprensa, dos documentários, das obras de ficção. Ou seja, é impossível tornar-se leitor sem essa contínua interação com um lugar onde as razões para ler são intensamente vividas. Logicamente a atividade escolar precisa se estender a atividades promovidas pelo Estado, em ações sistemáticas e ampliadas para que se possa romper a barreira dos 20% de leitores. Mas, o espaço da sala de aula pode ser pensado como um ambiente leiturizador, um espaço onde o professor se proporia a:
1- Trabalhar, sempre, com a diversidade textual (sem colocar juízos de valor entre um gênero e outro ou priorizar um em detrimento de outro) criando atividades que mobilizem diferentes estratégias de leitura e respeitem as especificidades de cada gênero textual.
2- Ler oralmente, vocalizando de maneira adequada diferentes textos literários, e promover a reflexão oral sobre o texto lido, estabelecendo relações intertextuais diversas.
3- Entender que, para o leitor em formação, a compreensão não se dá necessariamente no momento da leitura, mas durante a realização da tarefa, na interação com o professor, ao propor este atividades que criam condições para o leitor retomar o texto e, na retomada, compreendê-lo (KLEIMAN, 1995, p 9). Além disso, as atividades escritas são um momento de síntese do que foi discutido ou o desafio para uma pesquisa que amplie a compreensão a que o aluno ou a turma chegaram, promovendo a construção do conhecimento. Ainda nesse sentido, a produção de textos, especialmente de paráfrases e paródias, é um reinvestimento na leitura, pois exigem a compreensão do texto original como condição para serem produzidos.
4- Promover a socialização das leituras, em roda de leitura, sarau, painel dos livros lidos, varal ou pasta de resenhas, concursos literários, etc.
5- Vivenciar a leitura cotidianamente, criando na sala de aula um espaço para livros, revistas, jornais e outros portadores; promover idas regulares à biblioteca; fazer a leitura oral de um ou dois capítulos/trechos por dia, no caso de textos mais longos; possibilitar o acesso a filmes, desenhos, programas inspirados em livros.
6- Respeitar a caminhada de cada leitor e seus direitos inalienáveis.[2]
7- Conhecer o que lêem seus alunos, deixando de lado o preconceito de que há textos melhores (os que o professor lê) ou piores (os que os alunos lêem), criando pontes para a troca de saberes.
8- Promover a leitura na comunidade toda - roda de contação de histórias de pais, avós, tios, etc; concursos literários para a comunidade; feira de livros a preços acessíveis; exposições abertas sobre períodos literários, autores, obras; cursos abertos de literatura; confecção de livrinhos para serem veiculados na comunidade, etc.
E, finalmente, todas as sugestões anteriores podem ser resumidas nesta última: apenas um professor leitor apaixonado, ávido em encontrar companheiros com os quais possa compartilhar sua viagem e dividir sua inquietação, curiosidade, sedução do novo e do desconhecido e um forte senso de cumplicidade (MOISÉS, 1996, p 17) poderá contribuir para a formação leitores.
Referências
GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2002
FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994
KATO, A. Mary (org). A concepção de escrita pela criança. Campinas, SP: Pontes, 1988
KATO, A. Mary. No mundo da escrita: uma perspectiva psicolingüística. São Paulo: Ática, 1986
KLEIMAN, Ângela. Oficina de leitura: teoria e prática. São Paulo: pontes, 1995
KOLODY, Helena. Viagem no espelho. Curitiba: Editora UFPR, 1995
LEMINSKI, Paulo. Ensaios e Anseios Acrípticos. Curitiba: Pólo Editorial do Paraná, 1997
LEMINSKI,Paulo. Distraídos Venceremos. São Paulo: Brasiliense, 1987
MARX e ENGLES. Sobre a literatura e a arte. 4ª ed. São Paulo: Global, 1986
MOISES, Carlos Felipe. Literatura para quê? Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1996
PENNAC, Daniel. Como um romance. São Paulo: Rocco, 1996
SILVA, Ezequiel Theodoro da. Leitura na escola e na biblioteca. 4ª ed. São Paulo: Papirus,
VASQUEZ, Adolfo Sanches. As idéias estéticas de Marx. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1968

[1] Revista Veja, Editora Abril, 3/4/96, Páginas Amarelas
[2] Para PENNAC (1996) há Dez Direitos Inalienáveis do Leitor: O direito de não ler. O direito de pular páginas. direito de não terminar um livro. O direito de reler. O direito de ler qualquer coisa.. O direito de bovarismo. O direito de ler em qualquer direito de não ler. O direito de ler uma frase aqui outra ali. O direito de ler em voz alta. O direito de calar.
Elisiani Vitória Tiepolo
* Formada em Letras pela UFPR. Mestre em Literatura Brasileira pela UFPR. Autora da Coleção Arte&Manhas da Linguagem (Editora Nova Didática, Curitiba) para o ensino da Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental. Professora de Língua Portuguesa e Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa e da Literatura Brasileira na UniBrasil.[1] KOLODY, Helena. Viagem no espelho. Curitiba: Editora UFPR, 1995, p 48. Texto publicado no Caderno de Educação da UniBrasil.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

A sauna

Eucalipto - esse, principalmente esse o perfume de Rosa e do seu mundo de infusões de plantas silvestres, filtros verdolengos e boiões de vidro estagnados nas prateleiras. Esse o perfume verde-úmido que senti quando se debruçou na janela para posar. Tinha chovido e um vapor morno subiu do jardim com o sol. É o primeiro retrato que faço, preciso acertar, avisei e ela se retraiu na janela. Então beijei-lhe a testa, Vamos, relaxa, não pense no que eu disse mas pense nesta laranja que você vai segurar, assim, pode falar se quiser mas não se mexa, quietinha segurando a laranja. Quando esbocei o oval do seu rosto, estava tão séria que parecia posar para uma foto frente-perfil datada. Rosa Retratada, eu disse e ela aproveitou o sorriso para molhar os lábios com a ponta da língua. Continuaram sem brilho os lábios anêmicos. Minha Rosa Anêmica, você precisa parar com essas verduras, coma bifes sangrentos, você precisa de carne! O melhor retrato que já fiz. Mas o que foi feito dele?, perguntou Marina. Deve estar com ela, respondi. Por onde andam ambos é o que eu gostaria de saber, não foi há mais de trinta anos?
- Tempo à beça!
O funcionário de avental branco pensou que eu estivesse me referindo ao tempo de duração da sauna e quis me tranqüilizar, que eu poderia sair antes se quisesse.
Não é nada não. Estava só pensando.
- É a primeira vez que o senhor vem aqui? - perguntou tirando do armário um roupão branco. Colocou em cima os chinelos de plástico. - Temos alguns artistas na nossa lista de clientes, a maior parte faz massagem. O senhor não quer fazer uma massagem?
- Só sauna.
- Diz que em Tóquio esses institutos são servidos por meninas lindas de morrer que fazem tudo com a gente. Aqui também se encontra esse gênero, mas no Oriente é outra coisa. O senhor conhece Tóquio?
O tecido felpudo do roupão está morno. A música. E o perfume de eucalipto mais forte. Tiro o lenço e enxugo a testa. Afrouxo o colarinho. Ser simpático é retribuir-lhe o sorriso de Tóquio, é fácil ser simpático. E difícil, já começa a ficar bastante difícil, a simpatia satura mais depressa: um simpático pintor da moda. Não da primeira linha, mas a burguesia média em ascensão pensa que é da primeira e compra o que eu assinar. Mas enriqueci, não enriqueci? Não era isso o que eu queria, merda! Então, não se queixe, tudo bem, qual é o problema?! Vou seguindo submisso o avental branco, em lugares como este fico de uma submissão absoluta. .As solas dos seus sapatos de borracha vão se colando à passadeira de oleado verde.
- O senhor está com seu peso normal?
No inferno deve ter um círculo a mais, o dos perguntadores fazendo suas perguntinhas, seu nome? sua idade? massagem ou ducha? fogueira ou forca? - sem parar. Sem parar. Marina também já fez muita pergunta mas agora deu de ficar me olhando. Tempo de perguntar e tempo de olhar, e esse olhar soma, subtrai e soma de novo, ela é excelente em contas. O movimento aí das mulheres devia aproveitá-la para a contabilidade. Mas parece que lá no inferno o sistema é de entrevista. Perguntas. Num certo período perguntou tanto sobre Rosa, ficou tão fixada, uma curiosidade tamanha por nós dois. Teve um domingo que me obrigou a lhe mostrar a casa, queria ver a casa, o jardim, quero ver a janela onde ela posou para o retrato! Onde era a casa tinham construído um edifício sombrio, de terraços estreitos, com roupas dependuradas nos varais. Pronto, era aí, eu disse. E se me veio um certo alívio (passou, passou) tive a sensação meio angustiante de que alguma coisa me fora tirada, o quê? Como se a casa guardasse o período daquelas primeiras aspirações, tanta energia, planos, enquanto vivesse a casa esse passado estaria intacto: Rosa Laboriosa fabricando perfumes e molduras, todos os projetos ainda por fazer, meu fervor, minha sede de reconhecimento, vinte anos? Tantas as combinações ali à espera. Este caminho? Aquele? O edifício na minha frente era a resposta cor de pó com seus sulcos de goteiras e escarros. Quis me arrancar dali mas Marina me reteve, vê lá se posso fugir fácil assim. Se não fosse essa sua mania de ficar desparafusando o que deve ficar parafusado, Olha aí, querida, era mesmo o que você queria ver? Não tem mais casa, nem retrato, nem Rosa - está satisfeita? Ela acendeu um cigarro, sinal de que estava disposta a conversar, acho que o que fica mesmo de um longo casamento é a gente saber quando o outro quer falar ou ficar quieto. Também acendi o meu e esperei. Quer dizer que Rosa vendeu a casa para você poder viajar? Pergunta-afirmação, Marina é perita nesse tipo de pergunta. Mas eu tinha acabado de receber meu prêmio de viagem, se esqueceu do prêmio? Não tinha esquecido, mas se lembrava que num dos nossos primeiros encontros em Paris, quando eu disse que pretendia ficar algum tempo além do prêmio, acrescentei também que ia receber um dinheiro aí de uma casa que estava sendo vendida, mas não era essa a casa? E não era esse o dinheiro que Rosa ia me mandar? Moça sagaz essa Marina, quando nos casamos eu não fazia idéia de que fosse tão sagaz assim. E que tivesse essa memória, acho que falei demais, se me casasse de novo só abriria a boca para pedir o saleiro. No segundo andar do edifício tinha uma toalha amarela secando no varal. E fraldas, uma quantidade enorme de fraldas. Ou panos de prato? Você acha que aquilo lá é pano de prato? - perguntei apontando o terraço desfraldado. Ela atirou o cigarro pela janela e olhou: Fraldas. Liguei o rádio no painel do carro que se iluminou para a voz que .vinha de rastros, Ne me quitte pas! ne me quitte pas!... Ouvir isso assim cantado enternecia, dava vontade de ficar. Mas ouvir não me deixes sem música! Rosa não pediu, mas pensou. Desliguei o rádio. Com essa sua memória de computador, Marina - comecei devagar, com esse poderoso arquivo espero que não se esqueça de que Rosa estava grávida quando embarquei, não contei esse detalhe em Paris, contei mais tarde, lembra agora? Sim, claro, e lembra ainda que não tínhamos o dinheiro para o aborto, um pequeno pormenor, não tínhamos dinheiro, minha querida, eu não conseguia vender nenhum quadro, Rosa tinha deixado o emprego na farmácia, restou só uma casa com jardim, mas a gente não pode comer um jardim, não pode fazer o aborto num jardim, pode? repeti segurando-a pelo pulso com força, gostávamos desse gênero de brincadeira que podia acabar num nariz escorrendo sangue. Ela se desvencilhou, Está me machucando, seu bruto! Beijei-lhe o pulso. Abrandei a voz: Eu quis vender minha passagem e dar-lhe o dinheiro para o médico mas Rosa não aceitou, já contei isso, não contei? Ela acreditava em mim, ela me amava. Sabia o quanto era importante para a minha carreira essa oportunidade de fazer um curso na Europa, conhecer gente, fazer contactos. Insistiu em vender a casa que agora estava grande demais, o tio no sanatório e eu longe, sem idéia do tempo que ia ficar por lá, de que adiantava uma casa grande assim? E a gravidez adiantada e o médico exigindo adiantado, tinha outra solução? Já sei, aborto não era problema para você, uma pequena usineira flanando pelo mundo. Hoje pode parecer ridículo à dona Marina um amor tão pobre como foi esse. Mas assim foi. Agora tudo ficou simples, como líder libertadora você sabe que suas irmãzinhas dispõem de pílulas, creches, psicólogas, pelo menos é o que reivindicam nos discursos. Mas naquele tempo, já esqueceu? não tinha nem pílula nem nada. E se ela insistiu em mandar o cheque depois do maldito aborto foi porque queria que eu aproveitasse o prêmio, tinha fé no meu trabalho como nunca ninguém teve. Frisei esse ninguém com tanta eloqüência e não adiantou, Marina já não prestava a menor atenção em mim. Tirouo pente, penteou-se. Procurou me ver através do espelhinho do carro: Ela traball7ava numa farmácia, não trabalhava?
Farmácia de homeopatia, você disse, aquelas coisas. Ganhava bem, era independente, sustentava até o tio mudo, não sustentava? Então você apareceu e foi morar com ela. Internaram o tio no asilo porque você precisava de mais espaço para montar seu ateliê. Rosa deixou o emprego porque você precisava de alguém para montar suas molduras, não foi? Espera, deixa eu falar, naturalmente você começou a fazer sucesso, prêmios, exposições e justo justo nesta hora aconteceu a maldita gravidez que iria se somar aos gastos da viagem. Lógico, vender a casa. Quer dizer, ela ficou sem a casa, sem o emprego, sem o nenê e sem você que já estava de partida. Ah, ia-me esquecendo, e sem o velho tio que, apesar de mudo, parece que era uma boa companhia, ao menos podia ouvir. Tudo somado, pode-se concluir que a sua aparição não foi um bom negócio. Mas não se pode falar em termos de negócio, você a amava e quando se ama - acrescentou ela, tirando um tablete de chocolate do porta-luvas. Mastigou pensativa: Ainda uma coisa, conhecendo minhas irmãzinhas como conheço, vou além, querido. Vou além. Acho que o sonho da sua Rosa era ter esse filho, te amava e mulher assim apaixonada logo pensa em filho, é na primeira coisa que pensa aos vinte anos, um filho. Nunca se casaram, já sei, vi nos seus papéis, meu marido não é um bigamo. Mas o fato de não ter casado não significa que ela não quisesse (fez uma pausa para examinara unha lascada no porta-luvas) esse casamento, um monte de filhos, tudo direitinho. Não era seu esquema esse, querido, ela sabia perfeitamente e só se adaptou para não te perder. Para não te perder. Ficaria muito espantada se soubesse que a idéia do aborto foi dela, foi mesmo dela? - perguntou e voltou-se para o céu, num arroubo. Olha que tarde! Um azul tão azul, vamos até a chácara? Desviei a cara porque senti que estava escurecendo de ódio. Agora ia satisfeita, reconfortada com a certeza de que eu seguiria minhocando, envenenado. Sozinho. É que já tinha acabado o amor, eu disse calmo, entrávamos pelos portões da chácara. Que amor?, perguntou ela com a candura do caseiro se o caseiro tivesse me ouvido.
- O senhor não gostaria de tomar um café? Foi feito há pouco.
O funcionário de avental aponta para um preto também de avental que vem vindo com a bandeja. Tiro o paletó, deixo-o na cadeira e o funcionário vem todo solícito me livrar do roupão dobrado com os chinelos em cima. Tenho a impressão de que carrego esse roupão há horas. Há anos. Aceito o café para descobrir no primeiro gole que não quero café, queria entrar nessa maldita sauna e acabar com isso - por que fui inventar? Viro a xícara até aparecer a poeira preta da borra acumulada no fundo me engrossando a língua. Devolvo a xícara e agradeço, Estava ótimo. O perfume de eucalipto vem em ondas cálidas. Afrouxo novamente o colarinho e me dirijo ao grande recipiente de vidro com sua água mineral verde-azul. Mas o funcionário está atento, ele se adianta na minha frente.
- Só uns goles, se não se importa.
Não me importo. Fico vendo a água subir em bolha silenciosa antes de escorrer no copo de papel. Ela faz questão que eu me sinta um egoísta. Um interesseiro, um egoísta. É preciso se conhecer, enfrentar sua verdade, repetiu várias vezes nas nossas discussões. Ficou cheia de idéias, a pequena Marina, mudou bastante, ih, como mudou! Líder feminista. Dirige com outras delirantes um jornal, criam núcleos. Todas conscientizadas, muito interessante. Ela e o bando, as caras despojadas de sábias do Sião falando às criancinhas. Bastante esclarecidas, as moças. E Marina na frente, até meu passado lá longe resolveu esclarecer. Libertação. Depois, ficam aí se matando ou endoidando. Amasso o copo. Umas perfeitas tontas. Faço pontaria no cesto mas erro o alvo. Fazendo polêmica com suas teorias espetaculosas, ora, assumir. Assumir o quê? Rosa precisava era de um homem, como todas, até as lésbicas que morrem enroladas no pai. Está bem, falhei. Espero que tenha arranjado outro - um apoio, não é o que queria? O que todas querem? Rosa Homeopata. Rosa é Frágil. Os olhos eram duas folhinhas de eucalipto - foi como os desenhei no retrato, só descobri que eram bonitos quando comecei a pintá-los. Ás vezes Marina repete a pergunta, Mas onde anda esse retrato? E mais de uma vez (adoraria me pegar em contradição) repeti que dei o quadro à Rosa, deve estar dependurado na sua sala de visitas, as visitas que chegam ao sábado para o pôquer, casais do quarteirão com intimidade suficiente para abrir a geladeira e emborcar sua latinha de cerveja. O mais entendido de todos, que assiste na tevê ao programa de artes plásticas, fica admirando o retrato. E faz sua avaliação que sobe atualizada, na medida em que o dólar sobe, Esse retrato está valendo hoje uma pequena fortuna, sem dúvida, um dos melhores quadros dele. Nessa época ele ainda não estava comercializado, começo de carreira, não? - pergunta mascando o palito de fósforo que leva ágil de um canto para outro da boca, a mulher a avisou que mascar palito dá ferida mas ele não perde o costume. Os outros convidados ficam ouvindo com o respeito com que ouvem o guia das excursões a Buenos Aires. Ah, e a nova casa da Rosa (Marina me observando e sorrindo) então não havia de ter o mesmo espírito da outra? O perfume de eucalipto escapando dos vidros de água-de-colônia envelhecendo no porão, ela achava que os perfumes deviam dormir algum tempo, como os vinhos. Os móveis simples. Os grandes potes de avenca. As samambaias. Um abrigo para o carro no lado direito do pequeno jardim, deve haver um carro sob o toldo de lona, o dentista precisa de carro. Mas ela se casou com um dentista? interrompe Marina que já não está mais sorrindo. É a minha hora de achar graça: Sei lá, suponho que é dentista, tinha um que ela freqüentava quando a gente vivia junto, um amiguinho da família com consultório no bairro. Por acaso era com ele que eu tratava dos dentes? quis saber Marina. Com esse dentista. Não, eu ia num outro, na cidade, respondi sabendo muito bem aonde ela queria chegar quando me olhou, os lábios delgados um pouco contraldos. Reparo que seus lábios estão mais finos ultimamente, o que lhe dá uma expressão fria. Resultado da plástica que lhe aguçou o perfil, é isso? Mas que original. Então uma feminista assim fanática não vai assumir a velhice feminina? Não vai declarar seus cinqüenta anos? Queria muito ver esse retrato ela disse voltando a ler sua tese, está sempre às voltas com teses, entesada na própria ou na de alguma intelectual do núcleo, ô! a solidão. A solidão que vem e me toma no seu bico e me larga em seguida, despenco sem ter onde me segurar, nada, ninguém. No começo, ela se interessava pelo meu trabalho. Depois foi se distanciando cada vez mais. Mais. Está bem, pulei a cerca desde Paris e ela soube (a traição apodrece o amor, me disse), mas não é ridículo? Querer que eu contasse a verdade toda vez que me deitei com alguém, que eu chegasse e dissesse, olha, querida, estou vindo do apartamento de Carla, ouvimos disco, bebemos e trepamos das três às seis. Estou sendo franco e por isso não foi uma traição, traição é o que se esconde e eu fiz às claras, você tem que me aceitar e se deitar neste instante comigo se neste instante eu tiver vontade de deitar com você - era assim que eu devia agir para não poluir nosso amor? Camuflei como pude (a gente pode tão mal), menti até à saturação. Perdi. Mas se tivesse sido verdadeiro, o resultado do jogo seria outro? Quer que me analise, me concentre. Que me conheça em profundidade, sem mistificação, sem mentira. Se conseguir isso, afirma, poderia então voltar a pintar como no começo. Mas se não faço outra coisa, porra. Isso de ficar me parafusando. Adianta? Tem dias em que me sinto perfeito, outros dias, uma bela merda: nos dois estados não consigo trabalhar. Preciso não me sentir nem eufórico nem deprimido, estar assim, normal.
Mediocremente profissional. Daí faço um quadro atrás do outro. Perdi o fervor, Marina, é isso. Perdi o fervor. Muita técnica. Muitos compradores, os compradores compram tudo, quem falou em crise? Mas é diferente, eu sei. Você sabe também e me despreza, fiz todas as concessões. Todos os arreglos. Acabei rico. E é nesse ponto que quero chegar, já não preciso do sovina do seu pai, já precisei mas agora não preciso mais, fiquem aí sacudindo seu dinheiro que eu sacudo o meu, Quem quer casar com dona Baratinha que tem dinheiro na caixinha?, minha mãe cantarolava fazendo voz aflautada, como devia ser a voz da barata que achou uma moeda na fresta do assoalho. Minha mãe era a verdade. Você não quer a verdade, só a verdade, nada além da verdade? Pois minha mãe existiu com seu vestido de andorinhas num fundo azul-noite. Também é verdade que era delicada e que morreu cedo. Mas, meu pai? Professor? Não, ele não era professor, querida, nem foi baleado por causa de política, era um simples tira que vivia torturando os presos, enquanto torturou pé-de-chinelo, tudo bem, mas se meteu com presos políticos, insistiu no método de arrancar confissões e dentes com alicate e acabou seqüestrado e moído de pancadas, reconheceram o cadáver devido a um anelzinho de pedra vermelha que usava no dedo. Teve o que merecia, disse minha irmã, a mocinha de cabelos cor de mel repartidos bem no meio, como as santas, sobre o cabelo não menti mas menti quando disse que ela morreu afogada quando o barco virou, sempre achei lindo isso das mocinhas morrerem afogadas, como Ofélia, os cabelos se enredando nas ervas, carreguei na descrição propositadamente, uma sugestão de Shakespeare ajuda no cotidiano. Afogada. Afogou-se, sim, mas foi no puteiro lá da divisa do Paraguai, fugiu com um campeão de caratê e um dia vieram me contar em voz baixa, com discrição (essas notícias exigem respeito), que minha irmã tinha sido vista na casa de uma cafetina instalada na fronteira, uma mulata chamada Albina, Malvina, um nome assim. Ela e a colega já estavam com o pé na estrada depois de uma briga com faca? baile de carnaval. Mas minha mãe era verdadeira com seu vestido azul-noite e sua delicadeza. Aceita minha mãe, Marina? Serve minha mãe?, pensei perguntar enquanto me aquecia na lareira, fazia muito frio em Campos do Jordão, lá freqüentemente é frio e o frio estimula a memória. Então me aproximei do fogo até sentir a cara esbraseada. Por que não me deixa em paz?, tive vontade de gritar. Aqueci o conhaque no fundo do copo. Mas será que eu quero mesmo ficar em paz?
- O sabonete - diz o funcionário me entregando um pequeno sabonete verde. - E a chave do seu armário. Quer me acompanhar, por favor?
O sabonete com perfume de eucalipto. Enfio o sabonete e a chave dentro do chinelo que se desequilibra e quase despenca do alto do roupão embolado: vou empilhando os objetos que recebo como os sentenciados do cinema no primeiro dia de presídio. A música nostálgica (não está mais alta?), também de cinema, reconheço-a, é antigüíssima, ouvimos isso juntos, não ouvimos? Hem, Rosa? Eu trabalhava no retrato, mas já entardecia, mais dez minutos e saímos em seguida, tem aí uma fita que eu gostaria de ver, convidei e ela aceitou mas não se mexeu, os cotovelos apoiados na janela, o olhar verde-água colado em mim, às vezes eu me escondia atrás do jornal, do livro, da tela, sempre atrás da tela e ainda assim, atrás do muro, me sentia observado. Sua face foi se integrando na folhagem, escurecia rápido. Peguei o tubo verde e fui espremendo até o Fim, quis tudo verde-folha, a janela, o vestido, também eu sufocado numa alegria espessa como a tinta que só foi amadurecer na laranja que ela segurava com a maior gravidade, Eu te amo, Rosa, está ouvindo? Eu te amo!, gritei porque o retrato estava ficando como eu queria, antes de fazer todos os outros que fiz já estava sabendo que esse seria o melhor. Comecei a rir. Ela segurava a laranja com o ar responsável do Menino Jesus de capa de cetim e coroa dourada, segurando na mão direita o cetro e na esquerda o globo estrelado. Minha mãe pregou esse quadro na cabeceira da minha cama, Olha, reza toda noite pra Ele não se distrair e deixar cair o mundo!
- Sabe o nome dessa música? - pergunto ao funcionário. Ele vai buscar debaixo da cadeira o sabonete que escorregou da minha pilha. Devolve-me a chave que caiu junto.
- Desconfio que é de um filme antigo. As músicas antigas tinham outro gabarito, o senhor não acha?
Guardo o sabonete no bolso. Meu ódio por palavras como gabarito ou válido chega a ser um ódio físico. As palavras da moda. As pessoas da moda. Depois, vão-se gastando e sendo substituídas, tenho ouvido menos ilação, conotação, eu também estou na moda. Ou estive.
O espaçoso vestiário metálico converge para um espelho de moldura branca tomando toda a parede do fundo. Conforto e ordem para os clientes aparentemente em ordem - penso e me desvio do homenzinho repleto que passa por mim com a solenidade de um César no seu chambre branco, a toalha enrolada no braço num panejamento de túnica. Procuro o número do meu armário. A trilha sonora, evidente, posso assobiar junto. E faz acesso até hoje, fita e música, uma love story da época, Rosa ficou lavada em lágrimas, porque a bomba acertou em cheio no correspondente de guerra apaixonado pela médica eurasiana. Tudo besteira, eu cochichei e Rosa me apertou o braço, que eu .calasse o bico, o pedaço agora era tristíssimo, a moça subia na colina onde sempre se encontravam e fazia aquela cara sublime diante da miragem do amado com a música sublime subindo a todo o pano porque o amor, entende, o verdadeiro amor!... Rosa Manhosa, eu disse quando saímos do cinema, dando-lhe o lenço a mão porque estava se sentindo a própria eurasiana prestes a me perder de novo. Levou-me a um restaurante vegetariano, era vegetariana. Mas isto não é comida, protestei e ela sorriu e encomendou a salada. Rosa Leguminosa. Temperava meus bifes quase sem olhar para a carne desde que viu um boi indo para o matadouro. Falava pouco mas foi minuciosa na descrição que fez do sofrimento do boi estampado no olho saltado assim que sentiu o cheiro de sangue. Fincou as patas no chão, resistiu. Depois, num cansaço, deixou-se levar de cabeça baixa. Mas eu também vi os bois seguindo em fila no corredor estreito, e daí? perguntei-lhe. Também vi o olho arregalado, em pânico. Esse olho. Não queria me lembrar e agora lembro, o tio de Rosa, o mundo. Ele me olhou assim intenso na madrugada da internação.
- Como está quente - eu disse, desabotoando a camisa.
O funcionário teve seu sorriso melífluo e me ofereceu um cabide para o paletó.
- É a pré-sauna.
Ele lidava com suas plantas, esse tio mudo. Quando Rosa aproximou-se, endireitou o corpo (estava de joelhos) e lhe mostrou uma raiz morta que acabara de desencavar. Ela ajoelhou-se ao seu lado, acariciou-lhe os cabelos ralos. Limpou um pouco do barro seco que respingara em sua barba grisalha e entrelaçou as mãos nos joelhos. Estava pálida quando começou dizendo que ele devia ser internado para um tratamento, o lugar era muito bom, tinha árvores, flores. Você vai gostar, tio. Ele ouviu e fez que sim com a cabeça, fez que sim. Eu espiava da janela e quis me afastar da cena da sobrinha sentimental, explicando ao tio velho que nossa casa não era o lugar ideal para um velho mudo com mania de plantas. Fiquei. Entre os dois, o instante de imobilidade e silêncio, ela olhando para a terra. Ele olhando para a terra onde estavam ajoelhados. Depois, ele fechou os dedos em redor da raiz que ainda segurava, e dedos e raiz, ficou tudo uma coisa só. Tinha as unhas pretas, a terra era quase preta. As unhas de Rosa eram limpíssimas, mas ás vezes guardavam traços da terra que vinha em meio das suas experiências. Unhas fracas. Dentes fracos. E você permitiu que ela se tratasse com o amigo do bairro que nem formado era, estranhou Marina. E agora já nem sei se foi mesmo ela ou se sou eu que pensa nisso, tanta pergunta que começo a me misturar com as dela. Marina, meu juiz. Vou respondendo: Exatamente, Rosa era magrinha como um galho daquela planta que agora esqueci o nome, tinha no nosso quintal várias prateleiras só com esses potes de folhinhas trementes se estendendo nervosas para o lado da sombra. Ficam mais viçosas quando cuidadas por freira, Rosa me contou e agora lembro: avenca. Marina interessou-se (seu interesse por Rosa é permanente) e quis saber, Por que freira? Lá sei, em geral as freiras são virgens e virgem tem poderes, as raízes reconhecem as mãos himenizadas e agradecem, fortalecidas na aura de castidade. Rosa Mística não tinha imagens em casa, as plantas eram suas imagens: o tufo das violetas era Santa Teresinha. O eucalipto magrinho, São Francisco de Assis. O ipê roxo já nem lembro que santo era - tudo assim dentro de um ritual, de uma aura, ela via uma aura se irradiar das plantas, brilhante se as plantas estavam saudáveis. Aura mortiça se estavam doentes ou iam morrer, como acontece com a gente, igualzinho. Os bichos mais evoluídos e algumas pessoas (os videntes) conseguem ver essa aura, Rosa achava que o tio era vidente. Marina me atalhou, rápida: Esse tio era meio louco ou apenas velho? Achei mais simples não resistir. Chega a ser aterrorizante esse prazer de me entregar, deuses e gentes, pensem o que bem entenderem, que estou me lixando com seus julgamentos. Apenas velho, respondi. Implicou comigo, achei que queria me matar e a maneira que descobri para me ver livre dele foi essa, o asilo. O curioso é que quando me entrego, Marina se desinteressa e passa para outro assunto, queria saber mais sobre as avencas: por acaso não ficaram debilitadas com a minha chegada? A Rosa, não era virgem? Um ponto que a impressionou foi esse, o fato de uma moça com mais de vinte anos, independente, com cursos e ainda virgem. Lembrei-lhe que naquele tempo usava as moças pobres se guardarem, as ricas podiam ter seus amiguinhos e se casar sem problemas, mas Rosa Preconceituosa era da pequena burguesia. E do reino vegetal, as virgens vegetais ultrapassam as de outros reinos, a primeira vez foi tão difícil, Marina, mas tão difícil que precisei sair de madrugada e não encontrava farmácia aberta. Andei feito doido quase uma hora, fazia um frio cão. Quando voltei, ela tomava tranqüilamente um daqueles seus chazinhos de ervas, me ofereceu uma xícara. Rosa Encadeada! - chamei e ela riu mas depois chorou, eu não conseguia esconder minha irritação. A pobrezinha, disse Marina. Fiquei pensando, por que não se enternece comigo? Por que nunca se enterneceu comigo? Minha mãe teria ficado com pena de mim e não de Rosa, era para o meu lado que sempre inclinava a cabeça. Mas Marina não é minha mãe nem mãe de ninguém , não tivemos filhos. Seria por isso que ficou assim dura? Mas as amigas com filhos também são do mesmo tipo, agressivas, ironicas. Vai ver, é esse movimento cretino que está cretinizando o mulherio. Não querem machos e viram machonas, ô! onde estão as mulheres-gueixas? O funcionário aí disse que em Tóquio. Nós não sustentamos sempre vocês? Arrumar emprego, é se mudar para a rua, merda. E ter enfarte que nem nós, é dizer palavrão - mas é isso que vocês querem? Marido, filho, casamento, tudo atirado às traças. O importante agora é a irmã. Antes, nossas empregadas podiam beber querosene e Marina no cabeleireiro, no desfile de alguma bicha, a empregada está morrendo, Marina! E ela mandava o motorista levar flores. Agora mudou tudo, se preocupa, se responsabiliza, se questiona. Adotou aí uma pequena puta que adora ser puta, assim que olhei para a adotada, pensei, vigarice pura. Mas o núcleo decidiu que deve orientá-la, educá-la, diz que é uma vítima do sistema - e olha aí outra palavra no auge, sistema. Adotou uma modelo que adora posar nua, se amanhã se casar com o rei da soja, vai continuar posando nua porque simplesmente gosta de mostrar o rabo. Direito dela, tudo bem, mas o que não entendo é ficar fazendo depois aquelas caras de mulher-objeto miseravelmente explorada. Mulher-objeto. E o que tem ser objeto? Se é um objeto útil, não estaria cumprindo sua função? O caso da prima, esse então é de chorar de rir. A prima fazendeira sempre foi infeliz com o marido, nenhum problema, iam se agüentando. Depois da orientação grupal, separou-se e está agora mais infeliz ainda porque de infeliz rica passou a ser infeliz pobre. Ela vai se equilibrar, Marina diz com tamanha segurança que dá gosto ouvir. Confia em todos, menos em mim. Se enternece com a primeira que vem contar sua historinha, se enterneceu com Rosa, até com Rosa, nenhum ciúme póstumo, mas ternura, admiração, sei lá. Aquela noite, por exemplo. Eu me sentindo estuprado numa luta que de prazer ficou sendo de resistência, desafio, meu vexame na farmácia, as coisas que pedi às três da madrugada para que o homem não desconfiasse, escova de dente, talco, sabonete. Ah, ia-me esquecendo, o senhor tem vaselina pura?
Ele então sorriu. Marina também, mas o sorriso de Marina foi pouco espontâneo, já não acha tanta graça em mim.
Guardo a roupa no armário. Calço os chinelos. Antes de vestir o roupão enfrento o espelho inteiro e nu. Ainda em forma, por que não? E o meu golfe? Meu tênis, porra. Talvez um pouco de estômago. Pego a dobra com dois dedos, está aqui o excesso. Encolho a barriga e viro de perfil até ver meu queixo duplo com o rabo do olho. Olho tem rabo?, perguntei à minha mãe e ela me beijou, Seu bobinho, seu bobinho! Rosa fazia um pouco a minha mãe. Tínhamos quase a mesma idade, mas me sentia como um casulo dentro do seu amor, eu disse à Marina. Nevava quando entramos no café (Place Saint-André-des-Arts?). Até o último dia correndo eficientíssima com seu casaco preto e seu enjôo, já começava a enjoar. Mas não venha me dizer que ela está te esperando, que vai voltar para o Brasil na semana que vem, Marina me atalhou e mudamos de assunto, havia tanta algazarra no café, tanto calor. Bebemos o vinho de um só trago, glu-gluglu, esfregamos as mãos geladas e aspiramos a fumaça fumegante do sanduíche, que bom estar aqui! Que bom que você ainda está livre, ela disse e nunca Rosa ficou tão longe como nessa hora, Sim vivemos alguns anos juntos, mas quando embarquei, já estava tudo acabado ou quase. Marina pediu mais vinho. Mais sanduíches, ô alívio, afinal encontrara alguém em disponibilidade, seu mais recente amor fora um suíço com duas famílias, duas pátrias. E agora, um descompromissado, e pintor! No encontro no dia seguinte, fez uma ou duas perguntas sobre Rosa, mas perguntas ligeiras, ocasionais. Achei que eram ocasionais, não estava afeito à sua técnica. Ou ainda não desenvolvera essa técnica, uma perfeição: mesmo quando ela está na superfície de um ocioso movimento de chave de parafuso desinteressado em afundar, ela afunda. Queixa-se da minha atitude na defensiva, mas não tenho mesmo que me defender? Não posso ser nítido como pede que seja, é possível contar um fato com nitidez? As coisas devem se contadas com aparato para que não fiquem mesquinhas. Cruéis. Se descrevo um crime e digo que a mulher apontou e deu um tiro no coração do amante, se menciono simplesmente o gesto, sem a ambigüidade, sem a circunstância que é todo o labirinto dando voltas e voltas até desembocar nesse alvo... Está certo, vou tentar ser reto, quando conheci Rosa, ela era noiva de um amigo e companheiro de quarto, eu morava numa pensão. Ele foi providencial para mim, sem sua ajuda eu teria voltado para Goiás, Goiás Velho, sim senhora, é longe Goiás, não? Longe à beça. Então ele pagou minha parte na pensão e me forneceu cigarros, tinta. No dia em que viajou pro Recife (era de lá, ia ao enterro do pai) me pediu que eu fosse avisar a noiva, ela o esperava para o jantar. E não tinha telefone. Fui, jantei seu jantar e ceei sua noiva - nitidamente a coisa se passou assim. Pronto, viro um mau caráter total porque nesse tom também o episódio do tio fica abominável. Esse tio mudo que cuidava do jardim, a casa ficava no meio de um jardim e ele morava num barracão no fundo do quintal, o barracão que transformei no meu estúdio. Um dia sonhei com ele, com esse estranho mudo que conversava com as plantas. Chegava às vezes a rir quando elas diziam alguma gracinha, ria baixinho, mas ria. Se entendem na perfeição, Rosa veio me dizer: ele toca nelas e através dos dedos se comunicam até às raízes, já reparou que as flores desabrocham mais depressa quando ele está por perto? Que morrem sem sofrimento quando ele toma sua corola nas mãos? Inútil explicar-lhe que a discreta loucura do tio estava se fortalecendo como as raízes, no escuro. Tive então que exagerar, recorrer à ênfase para provar que de repente ele poderia ficar perigoso. Como naquela manhã em que me olhou enquanto segurava um daqueles seus ferros de jardinagem, cheguei a recuar. Você tinha saído, Rosa, estávamos só os dois. Então me fechei no barracão até que ele se afastasse, fiquei lá dentro pintando até você chegar, evidente, não fez nada assim de concreto, mas senti a ameaça. O perigo. Ela sacudia a cabeça, negando, negava sempre, o tio, perigoso? O tio?! Um velho tão inofensivo como as samambaias, as begônias, que ameaça podia haver numa roseira? Talvez tivesse medo, isso sim, talvez eu o intimidasse, o deixasse inseguro. Então se refugiava em suas plantas. Mas lá também tem plantas, querida, eu disse. Lá nesse asilo que andei vendo, já providenciei tudo, ele vai ficar feliz na companhia de outros velhos, velho precisa de velho em redor. Um mês depois eu o levava. Foi sem resistência. Na hora de subir no táxi, me olhou demoradamente. Tomei-o pelo braço, impelindo-o suave mas firme, pensei que fosse reagir, se desvencilhar. Sentou-se no banco e ficou olhando em frente, as mãos escondidas no meio das pernas, tinha muito esse gesto para aquecê-las. Rosa chorava trancada no banheiro, fazia algum tempo que se fechava no banheiro para comer doce escondido ou chorar, já estava engordando. Voltei e ela ainda trancada lá dentro. Bati na porta, não seja criança, Rosa, ele está felicíssimo, venha tomar um vinho, aura positiva, você não disse que somos nós que determinamos nossa aura? Eu mesmo preparei os sanduíches enquanto falava sem parar, animadíssimo: o barracão ia ficar ótimo com a reforma, nós dois podíamos pintar tudo, arrumaria minha cama num canto para poder trabalhar até tarde, dormir até tarde, talvez pudesse expor em setembro, setembro era primavera, um mês de sorte, podíamos dar uma festa no meu próprio estúdio e depois pensar naquele giro pela Amazonia tantos projetos, hein Rosa. Incluindo aquele curso que quero um dia fazer na Europa, sei que vai acontecer! Ela ouvia em silêncio. Bebia em silêncio, os olhos inchados de tanto chorar. Fui buscar seus chocolates e caramelos que comia escondido, pronto, coma o que quiser, Rosa Adocicada, Rosa Louca! Acordei tarde no dia seguinte. A mesa estava posta mas não a encontrei. Fui para o jardim: lá estava ela ajoelhada no canteiro das begônias, consolando-as. Chega disso, Rosa, vem que eu preciso que me arme uma moldura, chamei. Ela limpou no avental as mãos sujas de terra.
Amarro o cinto do roupão. O tecido esponjoso, morno, retém nas dobras o perfume de eucalipto. Os vidros luminosos de tão transparentes. O licor transparente. A alegria com que veio me contar sua descoberta, era um licor verde com um leve toque de menta, me trouxe num cálice, Prova! O simples perfume já excitava antes mesmo do calor se irradiar da boca para o peito, para o sexo, mas é um licor afrodisíaco, eu disse. Podemos ficar ricos com essa fórmula, um licor de monges! Ela riu e vi a luz do licor nos seus olhos.
- Eu já tinha ouvido falar muito no seu nome mas nunca vi nenhum quadro seu, só assim em revistas. O senhor vai fazer alguma exposição?
Sigo o avental branco. Noto que seus pés são enormes mas pisam com mansidão.
- Só em Washington.
Não ficou rica nem com essa fórmula nem com as outras, não tinha o menor senso prático, as pessoas em redor ganhando, ficando conhecidas. Ela não. Acabou cedendo até a fórmula da água-de-colônia à italiana que batizou com novo nome (Petronius?) e pôs para vender em toda parte. Por que fez isso, Rosa?, perguntei me controlando para não sacudir até despetalar a Rosa Obesa, estava quase obesa. Ela colava nos frascos caseiros os pequeninos rótulos com o antigo nome escrito com sua letrinha verde: Rosana. Homenagem à mãe que lecionava botânica, conheceu o marido num centro de pesquisas vegetais, uma família rara, todos naturalistas. Contei a Marina (mas o que não lhe contei?) o caso dessa mãe que viveu além da data marcada porque Rosa a fazia tomar chá de ipê roxo, quando a morte veio buscá-la, encontrou o tio mudo guardando a árvore e a árvore guardando a doente. Então parece que o tio mudo trocou com a morte algumas palavras e a morte fez meia-volta e só voltou dez anos depois. A mudez eloqüente, acrescentei, mas Marina não riu, estava muito compenetrada tecendo seu tapete, nesse tempo fazia dessas coiselhas para ocupar as mãos enquanto a mente ia longe, ocupada com outros tecidos. Vejo que a agulha não segue metódica o desenho: sem explicação, retrocede para um arabesco que ficou para trás, corre por ali e de repente reaparece de novo na mancha lilás na extremidade do pano, a lei é a das cores? Agora Marina quer saber nas minúcias o que aconteceu nessa noite em que cheguei com o recado do meu amigo: o jantar arrumado para ele. Ela esperando. E você chega - e daí? Daí fiquei, como não podia deixar de ser. Tinha chovido, a casa longe, cheguei escorrendo água. Não deixou que eu ficasse com aquela roupa, me fez vestir o macacão do tio enquanto secava minha calça com o ferro. A chuva não parava e eu estava febril, acabei dormindo nas almofadas que arrumou na sala. Antes de dormir, me fez tomar um chá quente de flor de laranjeira.
Meu amigo precisou se demorar no Recife, tinha irmãos pequenos, inventário, uma embrulhada. Então passei a visitá-la diariamente. E ela não fez nenhuma questão de casamento?, perguntou Marina só por hábito, sabe perfeitamente que eu não pensava sequer em casar. Mas se casou comigo, retrucou com a cara que conheço bem. Não demora e dá aquele salto com a agulha, mas eu me adianto: com você foi diferente, querida. Filha única, pai riquíssimo. Um avarento que não diz bom-dia de graça, esse pormenor é interessante, mas e a esperança? Não soma nisso? Ela riu abrindo o tapete nos joelhos. Nunca perdi essa esperança, nunca. Já estamos ficando meio velhos, é verdade, mas sustentar a chama como seu pai vem sustentando não é a mais valiosa doação? E nem vai morrer nada, chá de ipê roxo, Marina, ele não soube desse ipê?, pergunto e vejo que a agulha parece gracejar quando envereda sinuosa até uma zona que já não alcanço, ô! Marina. Por que falamos tanta tolice que começa inocente e vai se turvando? Você provoca. Eu respondo mais ou menos no mesmo tom. Mas e se eu quiser esquecer? Você não deixa. Por que você não deixa? Aonde está querendo chegar? Ela dobrou o tapete. Guardou as linhas. Pode ter sido devido à fumaça (acendeu um cigarro) mas tive a impressão de que seus olhos se umedeceram. Acho que você nunca amou ninguém a não ser você mesmo, ela disse apertando as palmas das mãos contra os olhos. Amei você-quis dizer e não tive forças. Ela sabe que se a tivesse encontrado como encontrei tantas outras se aventurando em Paris, não a teria levado até a embaixada para o casamento. Usava roupetas pobres porque era interessante ser pobre, mas eu estava ciente de que o pai era dono de fábricas de tecido, da avareza soube bem mais tarde. Amei Rosa-podia ter dito. Mas sabe também que se Rosa tivesse ganho com suas fórmulas, se ficasse aquele tipo de mulher que se leva pelo braço assim na frente, como um troféu, eu não viajaria sozinho. Nunca amei ninguém a não ser a mim mesmo? Mas se também não me amo, você sabe que vivo fugindo de mim. Ou não?
Aperto o roupão contra o peito, onde o suor já escorre despudorado. Subo na balança, o funcionário do pé grande dá as ordens e vou obedecendo, agora é para pesar? Então vamos pesar. Fico sabendo que estou com três quilos a mais, Uma parte desses três quilos o senhor vai perder daqui a pouco, ele anuncia e respondo que já estou perdendo, a sauna começou na entrada. Ele anota na ficha o meu peso. A balança que Rosa comprou para se controlar não controlou porra nenhuma, como impedir que se trancasse no banheiro com seus chocolates, seus bolos. Rosa!, eu chamava e ela abria a torneira, abria o chuveiro, mas estava era mastigando. Ou se masturbando. Masturbando?, estranhou Marina. Você acha que ela se masturbava? Melhor esgotar o tema inesgotável, melhor dizer logo que já fazia tempo que nem nos tocávamos mais, a gravidez foi só bebedeira, loucura. Já estava gordíssima quando aconteceu, tão acidental. Mas tão inoportuno que eu tive que lhe dizer, A ocasião não é ideal, Rosa. Detesto essa palavra ideal, mas foi a única que me ocorreu na hora. Então ela vestiu o casaco preto e saiu, em todos os acontecimentos vestia esse casaco que eu não podia nem mais ver, pensava que com ele disfarçava sua gordura. Não disfarçava, ô!, Marina, preciso mesmo continuar? Foi na noite do meu vernissage. Ela me preparou um lanche e depois fiquei bebendo, ainda era cedo. Podia ouvi-la no quarto ao lado, trabalhando nas molduras, gostava de trabalhar de noite, com música e mastigando seus biscoitos. Quando tomei o último gole de uísque e disse vou indo, ela me apareceu com o tal casaco. A bolsa preta: Eu também vou. Fiquei sem saber o que dizer. É que fazia meses que a gente não saía mais juntos, eu tinha meus amigos, meus compromissos, ninguém perguntava por ela, ficou naturalmente excluída. Mas não se importava com isso, tinha engordado e era bastante lúcida para saber que nenhuma roupa lhe caía bem. Então se vestia sem vaidade, cheguei um dia a pensar que fazia questão de parecer mais feia. Ela sabia da sua amante? perguntou Marina. Encarei-a: Mas quem disse que eu tinha uma amante? Marina sustentou o olhar. Irritou-se. Mas você tinha ou não tinha uma amante? E então? Ela não suspeitava? Suspeitava, respondi e esperei as perguntas detalhistas. Não perguntou. Ali estava ela de bolsa e casaco preto, prossegui contando. Pronta para ir também. Me ocorreu na hora um pormenor tão tolo, se o casaco ficaria melhor abotoado ou desabotoado. Tive um sentimento de culpa, mas por que deixei que engordasse assim? E aquelas roupas medonhas. Abracei-a. No dia seguinte mesmo lhe daria dinheiro para uns vestidos, Quero você elegante de novo, vamos jogar no telhado esse casaco e essa bolsa, hem, Rosa? Ela apertava na mão a alça da bolsa preta como há alguns anos (quantos?) apertara a laranja. Olhei o retrato. Olhei-a: ambas com os olhos verde-água colados em mim. Minha Rosa, eu disse, estou muito contente porque você vai comigo, tudo o que sou devo a você, lembra? Não quero mais que faça a Rosa Obscura, todos vão gostar de te ver, mesmo que eu não venda um mísero quadro, vamos comemorar depois, ceia, boate, uma farra completa! Mas você está gelada, toma antes um gole, vamos esquentar, toma este uísque! Abri uma lata de amêndoas, ela gostava dessas amêndoas, É cedo ainda, melhor chegar quando todos já estiverem lá. Mas não fique assim tensa, tire o casaco, venha aqui no meu braço. Sentamos na esteira, bebemos no mesmo copo e quando ela riu. beijei-a. Senti um resquício de sabor de baunilha em sua língua, Você andou comendo pudim, confessa! Ela negava e ria, há muito tempo que não ria e fiquei feliz. Rosa Risonha, ali ao meu lado como antigamente. Tirei-lhe os sapatos. Quando tirei sua blusa, o bico do seu seio se retraiu e se fechou como a folha da plantinha que dormia quando tocada, não era sensitiva? Dorme-Maria vinha da minha infância. Beijei o outro seio que também se fechou, Acorda-Rosa! Seus olhos escureceram. Abriu-se sem resistência. Nunca a penetrei antes assim tão fundo, nunca a tive tão completa num gozo que já era sofrimento. Como se adivinhasse (Marina ouvindo, pálida) que era a nossa última vez. Cobri-a com o casaco e deixei-a dormindo. Ou fingindo dormir. Na rua, comecei a correr. Se pegasse um táxi, chegaria sem atraso. Fui indo estonteado pela noite de estrelas com a lua no fundo e pensei na minha mãe com seu vestido da mesma cor da noite, Está me vendo, mãe? gritei e descobri que na morte ela se integrara ao globo estrelado que o Menino Jesus segurava, eu não precisava mais ter medo de que o globo caísse porque ela já fazia parte dele, Você está aí?, gritei e no delírio senti que meu sangue latejava da mesma cor da noite, intenso. Livre. Cheguei bêbado mas lúcido na exposição latejante, da porta me veio o bafo ardente. Entrei azul e grave, a glória é azul, Marina. Azul, azul.
- Se precisar de alguma coisa, tem a campainha - avisou o funcionário abrindo a porta de vidro opaco.
O vapor me sufoca. Fecho os olhos que ardem lacrimejantes: foi como se um tampão de gaze úmida se colasse à minha cara. - Está muito forte para o senhor? - ele pergunta.
O tampão vai se diluindo, rarefeito. Escorre no suor. Respiro o eucalipto que sopra em lufadas quentes do chão, do teto. Abro os olhos. Tento ritmar a respiração sacudida pela tosse.
- Espera... Prefiro entrar aos poucos. Agora está bem, está bem assim.
No nevoeiro denso, vou distinguindo os bancos de madeira, manchas dispostas em círculo, como num anfiteatro. No primeiro circulo, completamente nu, está o homem que passou por mim no vestiário: é lustroso e sem alento, espiando a barriga desabada em pregas sucessivas até a prega mais funda que quase lhe cobre o sexo, pequeno como o de um menino, mas escuro. Procuro me sentar a uma certa distância, que o gordo não cisme de enredar conversa. Mas ele também quer sossego, porque as energias aqui são todas canalizadas no suor. Estamos imóveis, só o suor ocorre veloz formando pequenas poças nos bancos. No chão. Poças isoladas umas das outras como ilhas. Os vasos comunicantes. Mas por que Marina disse isso? Que nunca amei ninguém. Não te amei, Marina? Nem no começo? A vontade de te montar e ser montado, aquela ânsia. A satisfação que me estufava o peito quando entrava com você numa sala, não lá sua beleza, que você não era bonita, mas tão elegante. Raçuda. Então eu te levava pelo braço, é minha. É minha. Sofreu m meus casos, quase nos separamos no episódio Carla, quer dizer que não amei a Carla? E Rosa, também não? Me manchei com o sangue dela e você diz que não foi amor.
- Eu tomaria uns três litros d’água. Fácil - murmura o homem levantando a cabeça e olhando o teto. Tem olhos de peixe com saudade do mar. - Um litro atrás do outro.
Suas pernas são lisas como cera derretendo em camadas que empaparam o roupão e agora se estendem num friso escuro que infiltra nas gretas do lajedo. Não é verdade que me envergonhasse dela, tão fina, tão sensível. Tão mais rica do que todo aquele mulherio brilhante que me cercava, foi o que expliquei a Marina, não é que me envergonhasse de levá-la às festas ou me envergonhava? Gostava de tê-la em casa, com seu cabelo preso nuca e aqueles aventais de laboratório. Rosa Particular. As tentativas que fiz para deixá-la menos desajeitada. Menos suburbana. E agora que falo nessas tentativas, será que fiz tantas assim? Ou achei conveniente aquele seu retraimento, principalmente quando desandou a engordar? Não sei por que engordou assim, eu avisei. Chocolates, biscoitos, mastigava o dia inteiro. Posso ser calculista. Mas ninguém é só cálculo. Ninguém é só interesse. Abro o roupão. As gotas de suor se cruzam no meu to e acabam por se juntar em riozinhos que deslizam abrindo ninho por entre os pêlos do ventre. Fico olhando meu sexo emurchecido como aquelas raízes que o tio mudo ia desencavar, escuta, Marina, então não amei? Como é que você pode dizer isso? Acho que nunca me entreguei totalmente, isso não, sempre ficava uma parte menor ou maior? de mim mesmo que olhava com lucidez a outra parte possuída. Essa história também de amar o próximo como a mim mesmo, não amei coisa nenhuma. Abstrações bestas, fantasias. Sempre recebi muito mais do que dei, concordo, estou sendo honesto. Passo a língua nos lábios: eucalipto e sal. Amei meu trabalho, eu trabalhava com tanto amor, lembra? Se ao menos tivéssemos tido filhos, Marina. Mas você nunca pôde ter filhos, espero que não me culpe também por isso. Então estamos sós, sem desejo. Sem fervor, quer dizer, sem fervor, eu, porque você está toda fervorosa com suas irmãzinhas, seu jornal. Libertação. Vai acabar se libertando de mim. Sabe, Marina, eu esperava que envelhecêssemos juntos, o sexo apaziguado, não mais traições, só aquela ternura tranqüila, sem ressentimentos. Sem mágoas. Com os nossos filhos. Sempre achei besteira essa conversa de filhos que logo se casam e querem ver a gente pelas costas, planejando discretamente (bem discretamente) um asilo para a nossa velhice quando formos velhos, os sacanas. Como fiz com o tio. E agora sinto falta deles, desses filhos que não tive. Podia ter tido com Rosa. Mas a idéia me apavorou tanto, depressa, Rosa, vai abortar correndo, correndo! Você estava certa, Marina, ela resistiu, queria um filho nosso. Também obriguei Carla, Você está louca, Carla? Mãe solteira - é isso o que você quer ser? É o que seria. Mas Carla, eu não vou me separar da Marina, se pensa que com isso vai me pegar pelo pé... Então ela pediu uísque, estávamos num bar. Não, não é isso, me respondeu. Não é isso que eu quero. Também nem quero mais esse filho que um dia pode me olhar como você está me olhando. A Carla. Era corajosa, devia fazer parte aí desse seu movimento. Enxugo o peito onde o suor brota mais quente, em cócega desesperante. Nem completo o gesto e novas gotas já nascem em lugar das outras. Arranco o roupão. O vapor ardente sopra dos quatro cantos da sauna como da boca do dragão, tinha sempre um dragão nas histórias da minha mãe, com homens maus castigados até o fim, o castigo quente era obrigatório. Fecho os olhos e a vejo vir vindo com seu vestido azul-noite. E minha mãe? Também não amei minha mãe? As lágrimas escorrem e se misturam ao suor que me inunda a boca, estou chorando como nunca chorei e quero chorar mais, suar mais, verter tudo nesta porra de sauna, e minha mãe?...
- O seu tempo já se esgotou - diz o funcionário abrindo a porta. Aproxima-se do homem gordo. Recua, tosse: - Mas pode ficar mais uns minutos, o senhor é que sabe.
O homem se levanta com dificuldade. Apanha o roupão caído debaixo do banco, veste-o num movimento penoso e vai saindo curvado, arrastando os pés descalços, esqueceu os chinelos.
- Chega. Por hoje chega.
Vem pela fresta da porta uma lufada fria de ar. E a música. Me encolho, cubro a cara com as mãos e apóio os cotovelos nos joelhos. Agora o funcionário se dirige a mim. Respondo por entre a fresta das mãos, Estou ótimo. Ele agradece e avisa que virá me chamar quando se esgotar meu tempo. Fecha a porta. Me descubro. As lágrimas correm mais espaçadamente, revigoradas em seu trajeto pelas veredas de suor. Fico olhando num só ponto, Marina diz que é assim e Marina sabe, olhar um ponto em frente (escolho a campainha) e no silêncio, sem mentira, sem disfarce, ir se desvencilhando das camadas e camadas que se acumularam as horas nuas, foi um livro? Um filme? Deixar ir caindo o que não for verdadeiro. Mas será que eu posso fazer essa seleção, eu?! Tudo está tão misturado, Marina. E você fala em eleger a verdade como aquela gente da inquisição, acho que você veio desse tempo, devia ser um inquisidor-mor de barrete marrom. Eu era um moedeiro falso, queimado na fogueira que você mesma ajudou a armar. Então nos encontramos em Paris todos esses séculos depois e vim me derreter aqui, concentrado num só ponto até escorrer minha última lágrima. Ficar sozinho mesmo, você aconselha. Mas não sou boa companhia, você sabe, quando fico assim quieto a onda trevosa começa a subir lá dentro, miasmas de lembranças que nem têm mais forma de tão comprimidas, não distingo caras, palavras, mas só treva grudenta invadindo os vãos, as brechas. O corpo sem ar e com todo o ar do espaço, rolando em abandono sem ter onde agarrar e sendo abarrado. Sendo agarrado. O bico, o pássaro desce e me levanta pelo bico e depois nem fica comigo, me solta sem apoio, num desvalimento tão desvalido, estou morrendo, não é isto morrer? Olho o ponto vermelho e não faço nenhum movimento, minha vontade é sair desembestado, quero beber, conversar com o funcionário de avental, aceito o cafezinho, aceito a festa, a música, a puta, deitar com a primeira puta, jantar o primeiro convite! E estou quieto. Se a felicidade está no movimento, permaneço imóvel, podre de infeliz e imóvel até escorrer a camada final. Lá bem no centro, como num furacão, tem uma zona de trégua. Calma. Respiro melhor, está passando. A angústia da agonia está passando. Coordenar a respiração até que o ar consiga varar o funil obstruído, soprar o coração ainda assustado, me comovo com meu coração que treme como um pequeno pássaro, com medo daquele outro, enorme, que me arrebatou há pouco. Acaricio-o de leve, fique tranqüilo. Entrelaço as mãos no ventre - o gesto da minha mãe. Mas ela não ficava olhando para as mãos, ficava olhando para dentro. Não foi como eu contei, Marina, você sabe que não foi. Pediu que eu mesmo dissesse, pois estou dizendo: ela me espera para o jantar, a minha noiva, mas tenho que seguir imediatamente, ele disse. Aquele meu amigo. Vá e avise que meu pai morreu, mas avise com jeito, ela é tão sensível! Pode deixar, respondi, sou jeitoso. Quando atravessei o jardim, tinha decidido, vou me instalar aqui. Até meu resfriado, lembra? Se ela se comover comigo, um pobre pintor desconhecido e de Goiás Velho - o que comove mais ainda, se for tocada pela minha pobreza. Pelo meu desamparo, e se for do tipo maternal, se quiser ser minha mãezinha. Aceitei a roupa seca. Aceitei o chá. Rosa-Chá - eu disse e ficamos sorrindo das outras rosas que viriam depois. É fácil representar, Marina, mas quero insistir num ponto, não foi só representação, você gosta de nitidez e ninguém é líquido nem sólido: pastoso. As coisas são embrulhadas, até o dragão tem o seu lado, me pergunto agora mesmo, sem cinismo: não era amor? Não acabou sendo amor? Nunca se sabe na hora. Nem depois. A noite do vernissage, sim, representei, eu não queria que ela fosse comigo, o queria mostrar minha mulher, uma gorda de casaco preto. as engordou quando se sentiu rejeitada. Estou bloqueado, eu dizia e ia trepar lá fora com outras mulheres e nem disfarçava, ela sabia. Sabia. Quando chegou aquela noite e disse, Vou com você, pensei na mesma hora, dou-lhe um porre, vai beber tanto que só vai acordar no dia seguinte. Mas no meio (não estou dizendo?) veio o desejo. Não estava programado aquele amor dolorido, doce, a exposição me esperando, as estrelas e ela dormindo em seguida, cúmplice da minha fuga, a Rosa Generosa, estou certo de que fingiu que dormia. Totalmente a meu serviço, a Rosa Rejeitada, deixou seus tubinhos e passou a cuidar das minhas molduras, tinha talento também para a madeira. Nunca pudemos ter empregada, ela sozinha dava conta da casa, do jardim. A alegria que me tomava às vezes só de pensar que estava à minha espera, sem ressentimento. O olhar limpo, as mãos limpas. Os vidros verdes e o perfume. A sopa verde e meu bife sangrento, era calma. Minha Rosa Tranqüila, eu lhe dizia baixinho, se você me abandonar, me mato. E estava sendo sincero e por isso me pergunto se não era amor, um amor calculado, mas amor - existe, sim. A gravidez foi o imprevisto. Nem o retrato ficou com ela que também o retrato acabei vendendo, tive uma oferta alta e não resisti. Véspera da viagem. Faço outro, Rosa, prometi antes de embarcar, faço dúzias depois! Não, não está na sua sala de visitas com as visitas que não chegam para o pôquer, invenção essa história do dentista, quero dizer, de fato ele tratou dos dentes dela, mas depois nunca mais se viram, ela não saía quase. Uma droga de dentista que a fez sofrer, vivia com os dentes encrencados, o dentista bom era o meu. Véspera da viagem. Então ela saía sem parar, tinha o aborto. A mudança. E tinha que providenciar o seu quarto no apartamento de uma conhecida. Uma tarde (foi a última?) voltei mais cedo, o embarque era naquela noite: estava ali, quieta, olhando suas plantas, parada no meio do jardim. Não me viu chegar e continuou de braços pendidos ao lado do corpo, as mãos abertas em leque sobre o canteiro - era um gesto de despedida. Não podia levá-la e foi dizer-lhes isso, dizia adeus ao seu São Francisco de Assis, à sua Santa Teresinha-ô! Marina, a vontade que tive de gritar quando a vi assim, apaga tudo, Rosa, não tem mais viagem, nem aborto, nem mudança, vamos ficar! Ficar. Mas que filho da puta você virou para permitir uma coisa dessas, fiquei repetindo só para mim enquanto a tomei pela mão, Vamos? Sua mão estava gelada. O táxi está esperando, Rosa, estamos atrasados. Ela fechou no peito a gola do casaco preto, Sim, vamos. O táxi esperando, eu estava com pressa, Marina, e minha carreira? Meu prêmio? Você me esperando em Paris, Place Saint-André-des-Arts. Duas semanas depois da minha chegada, recebi a ordem de pagamento do cheque que prometeu para encompridar minha viagem, mas não recebi nenhuma carta. Nem sequer um bilhete. Escrevi para o endereço que tinha me dado e a carta me foi devolvida, Endereço desconhecido. Recorri aos nossos amigos, que eram só meus: não, ninguém tinha idéia de onde ela poderia estar, era esquiva, não? Mesmo depois do nosso casamento ainda renovei as buscas, saudade, remorso ou simples curiosidade? Não sei. Rosa Desaparecida. Desaparecida. Desaparecida. Tentei refazer o retrato e ficou uma imitação pobre: apenas uma moça na janela segurando uma laranja e não a Rosa segurando o meu mundo, foi o meu mundo que ela segurou. quando lhe dei a laranja, Segura assim, não se mexa. Apodreceu. Tentei um segundo retrato e acabei rasgando tudo, estava só e bêbado quando chamei o Diabo, Quero pintar como pintava, me faça pintar como antes e lhe dou já minh,alma! Será que você não quer a minha alma? Mas é uma alma tão porcaria assim que nem você aceita? Quando Marina chegou, contei que quis fazer o maldito do retrato e o Diabo nem deu sinal de vida. Ele já tem alma demais, ela disse, está querendo se desfazer das que tem. Apodreceu. A laranja. Não, não se refaz nada, meio século já se esvaiu e evaporou, quanto ainda me resta? E se eu tentar de novo, você acha que é tarde? Escuta, Marina, se eu tentar novamente? Me responda, Marina, e se eu recomeçar? Se você me ajudasse, se tivesse confiança em mim, eu poderia voltar a trabalhar a sério, largo tudo isso, vai ser uma alegria vencer essa vaidade, essa ânsia, trabalhar em silêncio, só nós dois, ficaremos juntos e quem sabe na solidão?! A fé. O amor, e se voltar o amor, não é possível isso? Responda, Marina, responda! Já não aconteceu antes?
- Se quiser me chamar, basta apertar a campainha - diz o funcionário abrindo a porta ao novo cliente que entra pisando firme, majestoso. - Não está muito forte, não? Por obséquio, a sua toalha.
Faz um gesto na minha direção, E suficiente? Calço os chinelos e me enrolo no roupão. Enxugo os olhos. A cara.
- É suficiente.
Aproxima-se para me ver melhor. Tenho vontade de rir: já devo ter me derretido inteiro, as manchas azuis dos meus olhos boiando lá adiante, na correnteza - ô!, Marina. Você também está sorrindo, tem razão, tantas vezes prometi exatamente essas mesmas coisas, tantos projetos. Fidelidade. Disciplina e solidão - lembra? Verdadeiros delírios de intenções, palavras. Não tem o futuro, não vamos falar em futuro que isso não existe. Só tem agora. Agora. Respondo só por agora.
- Então? - pergunta o funcionário enquanto me conduz de volta.
Sorrio para os seus pés enormes e comunico que estou um tanto enfraquecido, mas limpo.


In “Seminário dos ratos” Lygia Fagundes Telles(Brasil, 1923)

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Sou um pouco de tudo misturado como um monte de coisas que ganhei de pessoas que passaram pela minha vida e com um toque de acaso na tarde confusa que nao sei como me definir